sábado, 11 de junho de 2011

Jamais diga eu te amo

desautoria.blogspot.com


O cérebro de uma criança
automaticamente acreditará
no que lhe é dito,
mesmo quando o que lhe é dito...
é uma besteira.
E quando esta criança crescer
ela tenderá a passar
essa mesma besteira aos seus filhos

O Vírus da Fé, Richard Dawkins


Cicatrizes são troféus, disse ao encarar pela enésina vez o agressor e lembrou-se do caminhonheiro que morava na rua de baixo e duas vezes por mês estacionava seu FNM-D9.500 no terreno em frente à meágua onde, mal e porcamente, vivia guardada pela mãe que insistia em reprimí-la naquilo que, em seus pequenos seis anos, nem sonhava imaginar de e pra si, ainda. Embora já tivesse ouvido das amigas coisas horríveis que os adultos podem fazer uns aos outros, por gosto ou necessidade, pensava apenas em ganhar do papai noel aquela boneca de cabelo louro e cintilante, como os seus próprios. Do futuro, era o que esperava. Quanto ao resto, quando fosse a hora saberia o que fazer e isto não a preocupava nem um pouco nem mesmo naqueles momentos em que era injusta e severamente castigada por este ou aquele gesto interpretado como leviano ou obsceno pela macerada mãe madrasta. (…) A vida é assim mesmo: julgamos, culpamos e punimos os outros baseados nas nossas próprias escolhas, nem sempre louváveis, guiadas pela ignorância, imediatismo ou mesmo aceitação em ser o que se é por absoluta incompetência em arriscar-se ser de outra forma. (…) Assim, como poderia ganhar aquela boneca de papai noel se não fizesse o que lhe mandavam fazer? E o caminhonheiro foi bastante convincente. Pediu-lhe que fizesse bem feito, era necessário, pois papai noel só atende aos pedidos das meninas muito boazinhas. Ao serem flagrados pela mãe, tentou correr mas foi agarrada pelos cabelos e espancada sob alegação de que era uma sem vergonha, uma descarada, uma perdida, a única culpada por toda a desgraça do mundo, pois nascera mulher e mulher foi feita pra sofrer e fazer sofrer quem lhe caisse nos braços, para espalhar o inferno neste mundo de deus dará... Por isso não havia outra saída senão aceitar os cinco cabrais que o caminhonheiro lhe estendeu a título de indenização por perdas e danos. Naquele ano, papai noel não cumpriu com o seu papel mas o fez no ano seguinte quando suas pernas grossas e seus seios hirtos aceitaram os chamegos da professora primária, do guarda, do padeiro, do sacristão e de dois ou três doutores que às sexta feiras davam plantão naquele buraco encravado na Serra Dois Irmãos, pertinho de Viçosa. Daí reparou que para ganhar o que quer que fosse deveria que ser mais que boazinha, deveria tornar-se uma colecionadora de cicatrizes, afinal o que lhe pediram daí em diante passou-lhe a doer mais que o costumeiro, devido aos excessos de um e de outro ávido em sacrificar-lhe no altar dos imperativos humanos. (…) A civilização tem destas coisas, ao mesmo tempo em que nos tira do estado de selvageria nos capacita a requintar cada vez mais o animal que nos habita, dotando-nos de técnicas sofisticadas de submeter e ser submetido, de sofrer e de fazer o outro sofrer por nós. Não demorou muito a perceber que, ao invés dos aguardados presentes ia, isto sim, acumulando dores, dores, sempre mais dores, não só na pele, mas dentro, lá onde ninguém chega, lá onde só você sabe o quanto dói uma saudade, disse Jocélia certa de que fora agraciada com um poder maligno, porque não era uma questão de gostar ou de não gostar, era uma uma missão, sua missão, a sua parte naquele imenso latifúndio.

Vê esta aqui, e riscou com o indicador o traço que ia da sobrancelha esquerda até perto do lóbulo da orelha, esta ganhei quando tinha doze anos. Como deve ter percebido, o que quer que você pretenda fazer não há quem já não tenha feito antes. Não ocorre-me novidades, meu caro. Não há dor que eu não já não tenha sentido, não há dor que eu já não sinta de antemão toda a sua crueza. Portanto, sugiro que, se queres mesmo ver-me sofrer faça-o aqui no lado interno da coxa, onde poucos pensaram marcar e que, ultimamente, reservo para iniciantes. Consinto tudo, desde que seja rápido. Só não permitas que te odeie por teres sido impreciso. Porque em mim, só aqueles que traziam na alma a marca dos verdadeiros peritos puderam, por suas inventividades, galgar este acidente humano que me tornei. Preste bastante atenção na tua saliva, se salivares pouco durante o golpe, estanca, não foste feito para tais vôos. Agora, se babares ao me ver entregue aos teus caprichos, aproveita e jogue por terra o ultimo vestígio de pieguice que acaso ainda nutras dentro do teu peito. Já me deixei levar por muitos covardes, por mansos, por crédulos, por honestíssimos moralistas e até por donzelas e matronas invejosas da minha liberdade e da minha resignação, eu, sempre atraída por aqueles que machucam por machucar, que não aguardam qualquer recompensa que não a imediata satisfação e que, arrogantes, cospem sempre no prato que comem ao alardearem vitalidades como se fosse mérito próprio e não produto de outras dores.

Que foi, vais desistir sem ao menos tentar provar do meu sabor, sem ao menos saber se é acre, se é doce, se azedo? Travo, amigo, meu gosto é travo confesso, já que não foste feito para as coisas verdes. (…) Queres saber? Ganhei a minha boneca, vive comigo até hoje, cuido dela como cuido de mim mesma, banho-a, faço-lhe roupas novas, deixa-a à janela para apreciar a tarde, levo-a pra passear, conto-lhe histórias, falo do amanhã, de quando estiver crescida... falo dos garotos, das suas brincadeiras irresponsáveis, do primeiro beijo, do primeiro sutiã, da primeira menstruação, falo de todos os principes encantados dos quatro cantos deste mundo, ensaio com ela subidas ao altar, falo da primeira noite, das noites seguintes, dos filhos que virão, dos netos que virão e, sobretudo, da minha satisfação de vê-la sempre com aquele sorriso no rosto... ah, aquelas bochechas rosadinhas que gosto tanto de beijar e apertar! Desculpe, imperdoável minha tolice. (…) Agora por favor, afaste-se, devo prosseguir e se fores quem eu penso que és, escuta, te peço, nunca, jamais, jamais tornes a dizer eu te amo, porque, eu, tola, posso acreditar, e aí não terás outra escolha senão matar-me lenta e dolorosamente.



5 comentários:

  1. lol. Fazia tempo que via algo assim. Liberdade e Resignação. De onde veio o chamado? Da memória, do sonho, da tv, da rua?

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  2. cruzes, Paulo, chocante, eu não sairia viva depois de escrever um conto desses, admiro tua força..

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  3. ...Eu te amo! A Maria continua dizendo eu te amo a quem de faro ama e como ama a tantos, por que no mundo existem mais bondade que maldade.
    Ao reconhecer em suas cicatrizes que elas estavam apagando era hora de esquecer o mau feito e evitar que lhe continuassem a machucá-la. O papai noel trouxe-lhe a boneca quando ela disse sim enfrente ao altar e far e o padre abençoou o ato dolorido e mais uma cicatriz lhe foi aberta, ms desta vez a boneca veio nove meses depois, nem era época de natal, ele foi tão bondoso que adiantou a entrega. Mas Ela, a Maria foi obediente e deste então passou a ser cada dia mais obediente. As novas cicatrizes eram agora invisíveis, essas ela não as mostrou ainda para o mundo.
    Você foi a pessoa que mais compreendeu a Maria, parece até que esteve todo tempo junto com ela, será que não eras o anjo da guarda que ela ouvia dizer-lhe que tudo ia mudar e ficar bem.
    Não se preocupe meu rei, a Maria dirá sim tantas vezes forem preciso: Eu te amo< e a cada cicatriz apagada o amor em seu coração aumentará.
    Você foi simplesmente maravilhoso, nem eu contaria com tanta prioridade e sentimento os desabafos da Maria.
    Obrigada.
    Hoje ( somente hoje li, pois não tinha coragem pra continuar)
    Ao terminar o meu texto e ler finalmente o seu fiz um chá de folhas de laranja lima e o tomei, fui para debaixo do chuveiro e fiquei não sei quanto tempo...Mas por certo saí de lá ma amando e amando mais o meu escritor.
    Íris Pereira

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  4. Eu diria, Paulo, belamente chocante seu conto. Preciso, palavras bem escolhidas e o fecho com a fórmula mágica que pode transformar tudo: "eu te amo".

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  5. Paulo Laurindo,
    A literatura nos permite, como nenhuma outra arte, creio eu, exacerbar aquilo que de mais indomável o ser humano possui. Parabéns. Preciso, cortante.

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