sábado, 4 de junho de 2011

A História do Homem que Seguia a Própria Sombra

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Um homem deixou de alimentar
a sombra que carregava. Alegou razões de economia.
Afinal para quê de sobejo levar algo que o duplicava?
Sem sombra, pensou
melhor carregaria o que nele carregava.
Equivocou-se. Definhou.
Descobriu, então, que a sombra o sustentava.

O Homem e Sua Sombra, Affonso Romano de Sant'Anna


O céu, limpo. Azul. Nenhuma nuvem. Nenhum pássaro. Azul e silêncio. Silêncio e pensamentos. Interrogações fervilhantes. Horizonte e nenhuma construção, nenhum acidente geográfico, nenhuma curva, nenhuma esquina, nada que lhe dissesse onde estava e o que fazia ali. Algo lhe queimava as costas. Virou-se. Sentiu uma estocada na retina, protegeu com as mãos os olhos assustados. Foi aí que viu as mãos, suas mãos... apêndices... mãos... viu os pés, as pernas, o ombro esquerdo... seus olhos não alcançaram as costas... percebeu o limite.

Agora que havia girado a cabeça reconhecera de onde emergira, um buraco escuro... e a escada. Veio-lhe o quarto. Um quarto? Seria aquele espaço um quarto? Lembrou-se das paredes e nenhuma abertura visível. Lembrou-se de ouvir algo ranger, sentir certa fricção. Lembrou-se de um espaço exíguo, apertado, um corredor? estreito, uma claridade e a enxurrada de ruídos passageiros oriundos de invisíveis e fugidias fontes. Quanto tempo ficara ali? Ou mais, como chegara ali? Quem o colocara lá? Quem era ele? O que ele era? Suspirou involuntário. Refez-se. Algo pulsou dentro de si, compassado. Levou a mão ao peito e contou um, dois... um, dois... série infinita, ocorreu-lhe: não há termo que alcançar.

Desistiu de sondar-se e ensaiou caminhar. Dois passos à esquerda, dois à direita, para frente, para trás... percebeu sofrego precária angústia. Desafogou-se: fechou a porta do alçapão. E viu a placa. A placa que nunca notaria, não fosse o instinto de fechar a porta do alçapão. Uma placa gasta, enferrujada (diria, acaso conhecesse os efeitos do tempo sobre o ferro), amassada, perfurada por projéteis, mas ainda assim possível verificar que, por cima da tinta verde fosco que a cobria, havia impresso, num tom avantajado de amarelo, alguns caracteres. Que?, pensou cândido.

Não entre em pânico! Repetiu tal qual um mantra. Encontrou disposição para colocar-se à prova. Correu. O horizonte fugia-lhe a cada passo. Não ocorreu-lhe perguntar-se aonde iria, havia algum lugar para chegar? Em direção contrária queimava-lhe as costas, aquilo. Queimava-lhe as costas, incansável, aquilo: não desiste? De queimar-lhe as costas, aquilo? E agora, à sua frente, uma área cinza, alongada, à frente. Quem és tu, olho que queima? Que fazes? Não tens sono, dormes nunca? Que há, para indicares meus passos? Mas aquilo que queimava-lhe as costas e que projetava aquela área escura à sua frente não respondia, não estava nem aí para o que pensasse, absorvia-o a tarefa de queimar-lhe as costas e projetar à sua frente uma zona escura e esguia.

A área escura à frente! Projeção da sua figura esguia. Cega como cego havia sido antes, no quarto, no fundo do buraco, tão escuro que nem dava pra imaginar que existia, se é que existia. Então tá! Seguiria a figura escura que ia à sua frente para onde aquilo que lhe queimava as costas os guiasse. Eram os únicos amigos que conhecia. Satisfeito por encontar companhia, as primeiras que assumia, desde que emergira daquilo que imaginara quarto, pôs a tagarelar certo de que havia encontrado finalmente dois amigos com os quais trocar ideias a respeito do porque das coisas, da vida e tudo o mais. E foi aí que chegou à difícil decisão de qual rumo tomar, se seguiria pra lá ou se seguiria pra cá, afinal diante de seus olhos e dos seus pés apresentou-se uma bifurcada e inesperada estrada.

Aconselhou-se com a área escura, nada; com aquilo que lhe queimava as costas, pior ainda. Falava com as paredes, sozinho, ermo... e agora, josé? O que hoje sabemos é que aquele passo, premido pelo ruidoso silêncio de fonte invisível oriundo, desencadeou uma sucessão de eventos incontroláveis. Primeiro sonhou, depois pensou que acordou, depois duvidou e considerou e calculou e estancou quando ocorreu-lhe saber que o que os olhos não enxergam o coração tende a acovardar-se e refugiar-se onde os olhos não alcançam, sempre temeroso, nutrido de medo e quiçá de desespero. Agarrou-se. Moldou-se. Vieram-lhe embates, combates, ganhos e perdas, choro, desilusão, depressão, volta por cima, maldições, execrações, maldito o dia em que emergira do buraco!, baixa autoestima, elevada autoestima... Mas como tudo não é para sempre, inventara prazeres, ocupações, encontrara a alma gêmea, erguera muros, fundara cidades, impérios, religiões, convivera com notáveis, incentivara a ciência, a indústria, o comércio e a arte, teve o seu nome associado as mais importantes descobertas da humanidade e um belo dia saiu pra passear com um descendente e, sem que ninguém soubesse donde, "uma luz o envolveu, o arrebatou, o fundiu, disse-lhe em tom grave e austero que dali em diante tudo seria diferente e que não se importasse mais com nada, que havia motivos muitos para obedecer, pois havia muitos senões e restrições que se faziam necessários dado a multiplicidade das coisas neste inominável caos que nunca cessa nem se aplaca, que a pena de obedecer para todo o sempre seria recompensada e foi por aí e quando pensou que não, dois cornos lhe nascera na fronte lívida e nas mãos símbolos foram impressos com fogo e graça para serem exibidos em muitas praças e que partisse, que fosse, que sacudisse o pó das vestes e se mandasse, que urgia, premente chegara o tempo e quando nada mais restasse que adentrasse a névoa que agora se lhe abria possibilidades de outras plagas..."

O descendente voltou com cara de quem tinha finalmente compreendido tudo a respeito das coisas, da vida e tudo o mais e, com os olhos esbugalhados de tanto enxergar e a língua seca de tanto balbuciar, escreveu um livro onde narra, com riqueza de detalhes, a história daquele que, durante a existência, só fez uma coisa na vida: alimentar a própria sombra. Vendeu horrores, foi traduzido em centenas de idiomas, permaneceu décadas e décadas na lista dos dez mais, tornou-se clássico lido e estudado, cânone em todas as academias e liceus mas, peca por um único defeito esta singela obra prima: não existe, em nenhuma de suas inumeráveis páginas, uma linha sequer sobre aquilo que queimara as costas do antecessor.


3 comentários:

  1. Paulo, que conto, fantástico, e nos lança no processo do personagem, a saída do abismo em estado de inconsciência, e tudo que depois serviu de estrutura ao descendente. Todo processo de glória guarda seus abismos, suas lutas, seus podres. A epígrafe me lembrou Clarice Lispector: "Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Não se sabe qual deles sustenta o edifício inteiro".

    bjs.

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  2. Ninguém é perfeito, mas sustentar seus defeitos é muito pesado e perdoá-los então???????????
    Íris Pereira

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  3. Texto denso, soturno e misterioso como a própria sombra. Deixou-me com uma pulga atrás da orelha!

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