sábado, 23 de abril de 2011

A Tradição Relativa




Les  Demoiselles  d'Avignon,  Pablo Picasso, 1907

A Força do Muyrakytã

No sopé da Montanha Amarela, lugar lugar frio e úmido, nasceu Ykamiaba, filha da Lua e do Sol. Crescera ouvindo, dos ventos, histórias de uma Terra Calorosa nos confins do Leste. Encantada, um dia decidiu alcançá-la e partiu acompanhada por várias de suas irmãs. 

Depois de atravessarem oceanos, campos e desertos, chegaram finalmente a uma floresta de um verde estonteante, de um verde tão verde que tiveram que ficar dias e dias de olhos fechados. Isto lhes deu oportunidade de se acostumarem com aquela profusão de sons e ruídos que, de tão estranhos, provocavam uma mistura de curiosidade e temor. Aos poucos, aquela emoção nova foi transformando-se em reverência e cumplicidade. Quando finalmente abriram os olhos, perceberam que estavam completamente nuas, livres das pesadas vestimentas e, não se espantaram com o fato de ser aquela a primeira vez que viram seus corpos.

Para não se sentirem desprotegidas, invocaram Coaraci, a virgem da manhã, a mãe do dia, que lhes ensinou o modo de fazer um adorno para o pescoço, o muyrakytã, cujo poder as manteriam vivas, livres das moléstias e dos predadores. Para que se sentissem em casa, ensinou-lhes também como fazer a paxiúba, uma flauta mágica. Tocada em dias de festas, animava a contação de histórias e as declamações dos feitos da jornada passada, presente e futura.

Um dia, enquanto Ykamiaba banhava-se nas águas claras do rio e uma de suas irmãs soprava na paxiúba o canto melodioso e longo do wirapu'ru, um homem, que não conhecia mulher e vagava por aquelas bandas a procura de tapi'i, invejou-lhes os instrumentos sagrados e os roubou. Ao tentarem recuperar os presentes que a floresta lhes dera, iniciou-se uma guerra entre os homens e as mulheres. Luta sangrenta e funesta. As que sobreviveram, decepcionadas, retiraram-se para outras regiões, formando aldeias nas quais só poderiam residir mulheres, agora denominadas as Ykamiabas, cunhãs-irmãs, aquelas que deixaram o convívio direto com o gênero masculino.

Foi no Amazonas, às margens do rio Nhamundá, perto de um lago de águas azuis, num lugar chamado de “O Monte Escondido dos Homens”, que as Ykamiabas construíram suas casas.

Temidas, ousadas, livres, aptas e ágeis, as guerreiras, embora vivessem isoladas, mantinham contato com algumas tribos vizinhas: os Apotó, Pariqui, Tagari, Aruak e Guacará. Ajudavam-se mutuamente em tempos de conflitos e invasão, mantendo relações cordiais, estabelecendo trocas de objetos ou de favores.

Purificavam o corpo e o espírito nas águas azuis do Lago Yacy-Uaruá. Do fundo do rio, retiravam o ouro verde, o barro do qual confeccionavam os seus muyrakytãs, tornado um símbolo da liberdade.

Em momentos de festa, escolhiam seus parceiros para que fossem fecundadas. Os Guaracá por serem elegantes, bonitos e respeitosos eram os preferidos para visitarem as guerreiras após o ritual sagrado, quando acontecia o momento mágico da vida das Ykamiabas: o encontro com seus amantes.

Só após a confecção do muyrakytã, elas adquiriam o direito de deitar com os guerreiros que escolhessem. A escolha era definida pela oferta de um muyrakytã ao pretendido. Depois dessa preliminar, perfumavam-se, adornavam-se e deixavam a natureza agir.

Ao darem à luz, se fosse uma menina, esta permaneceria com a mãe e se tornaria também uma Ykamiaba. Se fosse um menino, a mãe esperaria o desmame e, no ano seguinte, este era devolvido à tribo do pai.

Um caraíba viajando pelo grande rio Amazonas, após ter descoberto ouro, pedras preciosas e muitas outras riquezas raras em poder da floresta virgem, ao aproximar-se da margem viu-se cercado por um bando de mulheres fortes e bonitas que dispararam uma nuvem escura de flechas que cobriu o sol. O explorador deu meia volta e foi contar tudo ao rei de Portugal. O monarca, cheio de luxúria e ganância, mandou uma expedição bem preparada, decidida a tomar posse, em seu nome, daqueles tesouros.

As Ykamiabas conclamaram guerreiros de diversas tribos, que acederam ao pedido de ajuda. E a guerra, desta vez, foi muito mais longa e severa. As cunhãs-irmãs, obrigadas ao convívio diuturno com os homens, viram encolher lentamente aquele sonho de liberdade.

Quando a guerra terminou, as Ykamiabas haviam sido dizimadas e dissipadas. Das poucas que restaram, a maioria, cansada, decidiu acompanhar os guerreiros que sobraram na qualidade de esposas. Porém, algumas, herdeiras do sonho, da força e confiantes no poder da magia do talismã de ouro verde, embrenharam de vez na floresta para nunca mais serem vistas. 

Dizem as mais velhas que foi Jurupari, o Coaraci Raia, filho do sol, com sua mágica invejosa quem retirou o poder das mulheres. Falam que, em noite de lua cheia, quando os homens se reúnem para celebrarem aquela vitória, é possível ouvir o som longínquo de saudosas pixiúbas: são as Ykamiabas, agora transformadas em sereias, às margens do Lago Yacy-Uaruá, buscando despertar, do sono dos tempos, os elegantes Guaracás para que, amorosos, recebam a força mágica do muyrakytã. 


3 comentários:

  1. Bela lenda de nossas mais profundas raízes, de fazer justiça ao grande Câmara Cascudo.

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  2. Que gostoso poder ler isso! Aos poucos a gente vai se afastando dessas narrativas de origem e se esquece de toda a magia que elas provocam. Belo resgate!

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  3. Quanto quer apostar que eu estive lá e sendo um bela virgem. Você me transporta.
    Fascinante como contas.
    Íris Pereira

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