quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

O Homem que Comeu o Próprio Corpo – Parte 2

Primeiro Episódio

Homem – Quão grandiosa é a minha obra. Quão rico me torno, graças ao meu engenho e coragem. Glória à minha sabedoria que me estabeleceu aqui na Tessália, uma das regiões mais privilegiada da Terra. Mas, ó Fortuna! É imperioso cuidar de ampliar o pasto para que o gado se multiplique e eu continue obtendo lucros líquidos e certos. Céledro! Rápido, parasita, obedece ao teu senhor!

Servo – Aqui! Que posso fazer para tornar a vida do meu amo mais farta e confortável?

Homem – Dissimulado! Tua língua proclama fidelidade mas teu coração é traiçoeiro qual um verme das pedras.

Servo – Fantasias, meu senhor! Que pode inútil rato contra a grandeza da águia?

Homem – Bajulador! Cala e escuta: os pastos já não são suficientes para o rebanho. Preciso de mais espaço.

Servo – Nauseante Avareza! Patrão, avançamos o pasto cerca de dez mil pés explusando os Góridas para o lado leste não faz dois dias.

Homem – Isto é passado!

Servo – Mas não há mais para onde crescer. Adiante encontra-se o mar.

Homem – E aquele imenso bosque do lado sul?

Servo – Por Zeus, meu senhor! Naquele bosque há o vetusto carvalho consagrado à Ceres.

Homem – Frivolidade! Lá não reside à deusa. Vive ela no palácio olímpico regalando-se com ambrósia e néctar servidos por Hebe.

Servo – Sórdida Avidez! Não posso contrariar o amo mas, o bosque e o carvalho são protegidos pela ninga Dríade e eu não gostaria de ser perseguido pelos seguidores de Pã.

Homem – Superstição!

Servo – Tremo só de pensar no que esteja planejando.

Homem – Dou-te uma ordem, vai! Corta o carvalho ou cortarei tua cabeça.

Servo – Que situação! Na encruzilhada em que ele me coloca devo decidir por minha ou a fé.

Homem – Pouco me importa se aquela árvore é ou não amada pela deusa. Fosse ela própria uma deusa eu a abateria mesmo assim, porque se interpõe no meu caminho. Ousas desobedecer-me?

Servo – Não devo...

Homem – Covarde! Depois me entendo contigo. Vou eu mesmo cuidar de arrancá-la.

Servo – Ó Inconsequencia Humana! Um humano não pode ser tão estúpido!

Homem – Tens tua última chance.

Servo – Não, profanador! Não ouses continuar com esta insensatez!

Homem – Desafia-me? Toma a recompensa por tua piedade. Aquele que não pensa não merece ficar com a cabeça sobre os ombros. E quanto a tu, árvore, aprendi que só a razão move o progresso e muda a face do mundo.

Ninfa – Eu, Dríade, moro nesta árvore amada pelos deuses e, morrendo por tuas mãos, predigo que enorme castigo te aguarda.

Homem – Não acredito em fadas. Minha religião é o meu bem estar. De ti farei belos móveis, a lareira da minha casa terá lenha para muitas noites e o meu gado mais pastos para alimentar-se. Ó Ditosa Força! Divina é a potência humana.

Flora e Fauna – Ó Mágoa! A dor destroça a alma. Sombrio é o futuro. Acaba de ser morta nossa irmãzinha por sentença tirânica. Botemos luto, e recorramos àqueles que podem corrigir o curso de presente tão funesto. Ó Ceres! Ultrajado está o orgulho da floresta. Pedimos, pelas lágrimas que mancham nossas faces, que o culpado seja punido. Magnífica Deusa, que quando curvas a cabeça todas as espigas maduras para a colheita se inclinam, nós te convocamos! Vinde a nós e proclames o exemplo.

Ceres – Acendo ao vosso pedido, Ninfas Protetoras de tudo quando mais aprecio e estimo. Porém, devo alertar para a consequencia desta convocação pois, aos deuses, não se apela em vão.

Flora e Fauna – Ah, Madrinha! O que temos a dizer todos na Terra, em tristes ais, lamentam pesasoros. A grande árvore, o frondoso carvalho, útero e morada da exuberante Dríade, foi ceifado por golpes maledicentes de insidiosa criatura. Nossa irmãzinha jaz fria e estéril sobre o solo que sustenta o agressor. Queremos justiça para tal ignomínia. Que ele tenha sobre si todo ódio capaz de conduzir à loucura!

Ceres – Palavras de Parcas! Parai. Acaso vos ensinei desejam tamanho mal?

Flora e Fauna – Perdõe-nos, ó Divina! Mas assistimos tudo. Olhai! Estendei vossa vista para aquele corpo macio prostrado sobre o chão consagrado à vossa glória. Erisíchton, este é o nome, homem de monstruosa vontade, apesar dos apelos de quem bem conheceu o sofrimento e a humilhação, inexoralvelmente arrancou, com garras de górgona, o símbolo maior do teu poder sobre a Terra.

Ceres – Dríade abatida?! Indigno é quem provoca ato tão demente! Ó que ainda me encontro buscando consolo por desgraça passada e verifico que a alma humana, apesar de todos os benefícios que possamos, nós os deuses, ofertar, ainda é capaz de atos tão abjetos.

Flora e Fauna – Quem fez isto é inferior ao mais vil inseto!

Ceres – Se é assim como dizes, um verme foi quem provocou tal baixeza, basta que o pé heróico de Héracles pouse sobre a sua cabeça para que tudo se resolva.

Flora e Fauna – Não! É preciso mais. O Insígne Guerreiro o destruíria mas a latente vocação permaneceria como vírus contaminando até os mais puros de coração.

Ceres – Por encontrar-me desvalida, apenas uma vez castiguei os humanos. E descobri que eles não resistem a uma pena imortal.

Flora e Fauna – Não amacies teu coração, Ó Poderosa! Anuncie severa decisão para que tão logo possamos reconquistar a sanidade perdida.

Ceres – Que seja! Embora o faça com o coração consternado. Que venha Oréade, a ninfa das montanhas e grutas. Ela conduzirá o juízo inconteste da minha deliberação.

Flora e Fauna – Campos e vales, campinas e cerrados! Ouçam nosso chamado: envie até nós, da montanha querida, no dorso do vento, a casta Oréade. Que ela atenda e realize o que a nossa Deusa quer que se efetive.

Oréade – Não podia deixar de atender tão lancinante chamado. Amada Ceres! Que pretendes que eu faça? Ordene e estarei pronta para prestar a minha vassalagem.

Ceres – Amável Criança! Nobres são tuas palavras, mas não busco lisonjas. Nosso desejo é que se cumpra a virtude conforme atávico direito. Preciso que executes, sem parcialidades, a tarefa que te vou incumbir. Há na parte da longínqua e gelada Cítia, uma região estéril e triste, sem árvores e sem campos cultivados. Ali moram o Frio, o Medo, o Terror e a Fome. Vá àquela região e dize à última que tome posse das entranhas de Erisíchton. Que a abundância não a vença, nem o poder dos meus dons a afaste. E tu, destemida, não te assustes com o distância. Toma do meu carro, os dragões são obedientes. Levar-te-ão, através dos ares, em pouco tempo.

Oréade – Partirei imediatamente e atingirei o objetivo a que me destinas. Chegarei imaculada, ao Monte Cáucaso e levarei a efeito tua solicitação.

Ceres – Entenda-me, ó cândida! Chamei-te por não poder eu mesma aproximar-me da Fome. As vigilantes Parcas previram que nós duas jamais devamos nos encontrar.

Oréade – Assim está dito. De minha parte, estou disposta a fazer o que, na tua gloriosa ventura, não sois permitida executar.

Ceres – Muito te agradeço, preciosa! Agora, vai: faça a roda do destino cumprir mais esta etapa.

Oréade – Beijo-te as mãos, Zelosa Mãe! E num átimo de segundo estarei diante daquela que vai prosseguir o curso deste processo.

Flora e Fauna – Ó Sinceridade Afetuosa! Amamos quem amamos e fazemos o que acreditamos justo. Assim, o direito conduz, imparcialmente, cada ser à devida competência. Mas não se pode esperar mais. Levemos nossa irmã ao leito pleno. As festas fúnebres lhe daremos. Pois se alma evapora é preciso que lhe demos os meios para conquistar a permanência. Ó irmã! Não sei se grito ou suspiro. Espero apenas que a justiça triunfe.

Continua... 


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