domingo, 9 de janeiro de 2011

O Homem que Comeu o Próprio Corpo - Parte 1

Introdução

Toda e qualquer civilização é construída a partir de mitos fundadores. Todo povo tem o seu, que se desdobra em diversas narrativas que buscam dar sentido à existência. O mito é uma tentativa de explicação poética da vida, do mundo, da origem do ser humano e da sua missão e responsabilidade individual e coletiva, do ponto de vista moral, espiritual, psicológico, pedagógico e sociológico.

Particularmente aprecio os mitos gregos. Dentre estes, um especialmente, me chama a atenção por sua imediata relação com o nosso tempo. Trata-se da história de Erisíchton, um homem muito poderoso, proprietário de uma vasta extensão de terras. Na ânsia de ampliar seus negócios e obter mais lucros cortou um imenso carvalho dedicado à deusa. Como para cada ação advém uma reação, ela o castigou com uma insaciável fome, levando-o a gastar toda a sua fortuna na vã tentativa de saciar seu apetite voraz e, quando não possuía mais nada, passou a comer o próprio corpo. Este mito provavelmente nasceu quando os humanos passaram a cultivar os campos, quando deixaram de apenas usufruir da fartura natural para começar a produzir o seu próprio alimento. Quando passaram a ganhar o sustento com o suor do rosto, plantando para alimentar-se.

Na cultura judaica e posteriormente na cristã, isto foi encarado como uma condenação. Por ter comido da Arvore do Conhecimento do Bem e do Mal, o ser humano pecou e por isto foi expulso do Paraíso, tendo que trabalhar para viver. Daí, talvez, o trabalho ser tão pobremente recompensado entre nós – não há porque premiar o cumprimento de uma pena. Na mitologia grega, ao contrário, aquele ato de passagem foi uma dádiva. Contemplado pelos deuses com o conhecimento do trabalho de arar e semear o reluzente trigo, pode o ser humano, pela primeira vez, vir a fabricar alimento – o pão! A humanidade ganhara autonomia e poderia viver feliz para sempre não fosse o “manual de instruções” alertar para uma grave consequência: de posse do poder de interferir na Natureza, deveria, o ser humano, atuar com moderação e controle, sem egoísmos, sabiamente, para que não viesse a transformar a existência num irreparável flagelo.

Têm absoluta razão os que afirmam: modernos, foram os helenos! Em termos éticos pensaram em tudo. Por isso eram trágicos. Daí seu pensamento, penso, dever voltar a fazer parte deste nosso sofrível e desmemoriado cotidiano para que possamos, talvez, recuperar a sanidade perdida.

Intento, a partir de hoje, postar, em partes, na forma de diálogo, algo que escrevi a cerca de quinze anos atrás. Apesar de ser um libelo ingênuo e reducionista serve bem aos propósitos que nortearam sua composição: contar uma boa história, fazer uso de uma linguagem inusual, estabelecer ligação com o passado e servir à reflexão sobre o futuro que desejamos para a humanidade. Pode ter saído algo maniqueísta mas, não existe meio termo entre viver e sobreviver. Pode até existir perdão, justificativa ou desculpa para os atos que perpetramos contra a natureza mas certamente eles não invalidam as consequências. Faz-se urgente uma mudança de paradigmas. Que cada um os encontrem no recesso de suas próprias individualidades e no laborioso encontro no campo das experiências honestamente colocadas. Que os melhores sobrevivam!

Vamos à dramatização desta tragédia que atinge todas as idades.

Prólogo

Arauto – Não se assustem com o terrível enredo desta história. Ele apenas demonstra aquilo que a ambição desatinada pode gerar de infortúnios para toda a humanidade. Por se tratar de uma ação horrenda, o autor achou por bem iniciar com uma pequena celebração de louvor à Natureza, aqui representada por Ceres, deusa da agricultura, na esperança de que sejam semeadas graças sobre o desenrolar da cena e não caia sobre nossas cabeças a desgraça que irá se abater sobre o protagonista. Fiquem em paz e concentre-se.

Ofertório

Pai – Ó amada Deusa! Aqui estamos no bosque consagrado à tua glória para louvarmos a Bem Aventurança.

Mãe – Venerável foste tu, Grande Ceres, assistindo meu filho ainda pequeno. Com teus poderes magníficos conseguiste debelar o mal que lhe destruía a vida. Hoje, mais uma vez, entrego a ele, em respeito ao teu gesto inovador, este ramo de trigo para que fique gravado na lembrança das gerações teu feito maravilhoso.

Pai – Ó Dríade! Ninfa protetora dos bosques. Permitas que, em mais este ano de vigor e abundância, eu entalhe no tronco da tua árvore a marca da nossa agradecida presença.

Filho – Venerável Ceres, que a terra tornas fértil e os grãos nutritivos, exaltamos o dia em que nos presenteaste com a sabedoria do trabalho de arar e semear o reluzente trigo.

Mãe – Venturosa lembrança! Avivemos nossos pensamentos para que possamos recordar aquele dia em que, sentada ao pé desta árvore ancestral, a nossa benévola senhora chorava a perda da única filha, a bela, jovem e inocente Core.

Flora e Fauna – Afortunado dia! Colhiam eles amoras silvestres e gravetos para alimentar o fogo domésticos quando a surpreenderam desvalida e a convidaram para passar a noite na humilde casa em que habitavam. Arbitrário foi o destino que a trouxe a esta terra chamada Elêusis. Ardiloso foi Eros que, a mando de sua mãe Afrodite, acertou com a mais aguda e fiel seta o coração do monarca absoluto dos mortos, o potentoso Hades, fazendo-o apaixonar-se e raptar a donzela, encerrando-a para sempre no escuro Tártaro. Mas ela, diligente mãe, percorreu o mundo à procura da adorada filha. Antes, irada, lançou a culpa sobre a terra, provocando a mais severa desolação, por ainda desconhecer a causa daquele infortúnio. Vendo-a naquele estado muito insistiram até que ela consentiu em partilhar da cabana.

Filho – Lá eu jazia enfermo e ela, graciosa deusa, me beijou os lábios e me deu de beber caldo de aromáticas papoulas murmurando três vezes na minha boca palavras de encantamento. Deste modo minha saúde foi restituída por completo.

Mãe – Enquanto vida as Parcas me permitirem, pedirei perdão pela desconfiança que lancei sobre aquele augusta cabeça, frustando sua tentativa de deitar meu único filho às cinzas, pois não sabia que desejava apenas torná-lo imortal. Com infinita bondade nos disse que, apesar disto, ele cresceria grande e forte. E eis, Querida Ceres, a verdade da tua excelsa vontade.

Flora e Fauna – Não fosse Aretusa, a ninfa transformada em fonte, contar-lhe toda verdade e Zeus, pai dos deuses e dos homens, sábio e altivo nas suas decisões, ela ainda teria o peito inundado em lágrimas. A seu pedido, o Olímpico Jove enviou Hermes, o de pés ligeiros, e a diáfana primavera ao mundo subterrâneo pedirem a liberação de Core, caso ela ainda não houvesse comido dalgum fruto do mundo dos mortos. Porém, Moira, o destino implacável, achou por bem não permitir que ela fosse atendida integralmente. Tendo comido de uma romã ofertada pelo enamorado Pluto, Core ficou impedida de regressar ao seio materno. A desesperada mãe recorreu mais uma vez a Zeus que, sempre justo nos seus veredictos, consentiu que Core passasse a metade do ano com a mãe e a outra metade com o marido.

Filho – Ó Mãe Ancestral! Soubeste aceitar o acordo e esquecer a ira. Devolveste à terra teus férteis favores. E para completar a obra, voltaste para nos ofertar a divina graça. Resignada com o desfecho da aventura, tu me levaste num carro puxado por dragões alados a todos os países entregando à humanidade cereais valiosos e o conhecimento da agricultura.

Família – Ó Dríade! Tu que nasceste e moras neste magestoso carvalho, que de tão grande dá sozinho a impressão de ser uma floresta inteira, nós te homenageamos por protegeres o símbolo das nossas mais belas histórias.

Flora e Fauna – Doce Devoção! Nós nos alegramos e aceitamos estas singelas oferendas, prática comovente de amor à nossa Terra. Cantemos, dancemos, irmã! Hoje foi um bom dia. Quisera os homens consagrem – e os deuses não intervirão – seus mais puros sentimentos em singela exaltação. Cantemos, dancemos, irmã! Hoje foi um bom dia. Mas nem todos são iguais neste mundo de contrastes. Se um ora outro blasfema, se um cria outro destrói. Não nos enganemos, irmã! Hoje foi um bom dia, amanhã quem sabe?!

Continua...

5 comentários:

  1. Gosto muito do assunto. O texto está equilibrado e bonito. Também vou até o final.

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  2. Bem diferente! Tentarei ir até o final!

    http://ariannecarla.blogspot.com/2011/01/illusion-of-love-ilusao-do-amor_12.html

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  3. Andamos em círculos, não é, Paulo? Interpretamos cada um à sua maneira, mas bebemos do mesmo caldo universal. Ótimo texto.

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