quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O Homem que Comeu o Próprio Corpo – Final

Terceiro Espisódio

Homem – Ó avidez! Quanto mais como maior é a fome. Uma fome semelhante ao mar, que recebe todos os rios e no entanto não transborda. Ou qual fogo que consome todo combustível e mesmo assim continua ardendo.

Filha – Perdoe-me, pai. Mas seus bens diminuem rapidamente em face as incessantes exigências do teu apetite.

Homem – Miséria absoluta! Gastei tudo que possuía. Que fazer? Só tu me restou.

Filha – Por que me olhas assim?

Homem – Já não sou mais rico. Preciso de dinheiro... para comer.

Filha – Meu pai, não estás pensando...?

Homem – Um mercador pagaria umas boas moedas para tê-la junto a si.,

Filha – A que ponto chegou esta criatura. Vai vender a própria filha. Triste destino o meu. Merecia pai melhor.

Homem – Os pais cuidam dos filhos para que, chegada a hora, possam eles retribuir o investimento empenhado.

Flora e Fauna – Força Incontida! Ainda encontra tempo para produzir mais infortúnios. Repara na tua cegueira, humano! Admite tua fraqueza e terás insuflada nossa compaixão. Não há retorno. Erisíchton venderá a filha para que sirva de escrava ao primeiro que aparecer. Mas ela, inconformada, fugirá. Já a vemos, ofegante, dirigindo-se para cá.

Filha – Para onde? Meu novo senhor distraiu-se por instantes e consegui escapar. Mas temo que seja por pouco tempo. Ele é esperto e conseguirá me achar se eu não encontrar um esconderijo perfeito. Inexperiência! Por desconhecer a região vim parar nesta praia. Serei vista de qualquer parte. Não há pedras ou dunas que possam ocultar-me. Só este mar imenso e eu sem recursos para aventurar-me até terras mais seguras. Que digo? Não devo agir do mesmo modo paterno, imperfeito. Recorrerei à minha crença. Ó Poseidon Majestoso! Tu que foste protetor dos gregos na luta contra os troianos, vem em meu socorro. Mostra-me um modo de escapar ao meu perseguidor. Compadece desta alma violentada em sua dignidade. Ajuda-me, ó deus, não permitas que minha vida se estrague por completo.

Poseidon – Nada mais é preciso que digas. Injusto seria eu se não desse ouvidos à tua prece. Que Anfritite, a que governa comigo os elementos líquidos, dê nova forma a tua aparência para que não sejais reconhecida por ninguém.

Flora e Fauna – Ah, Compaixão Divina! Os inocentes não podem pagar pelos culpados. Equilibrado é o preceito que dispõe reconhecer igualmente o direito de cada um. Justa é a lei, que sendo única, sabe tratar os desiguais. Por que haveria a infâmia de um recair sobre os ombros dos demais? Mas escondemo-nos, irmã! O mesquinho negociante vem aí.

Mercador – Por Zeus! Já vasculhei cada pedaço deste terreno e nada da rebelde. É por meu investimento que devo continuar a busca. Não sou de levar prejuízo. Mas eis que vejo um moço. É bem possível que ele tenha visto a fujona, já parece estar ali a bastante tempo. Elá, pescador! Desculpe minha aproximação. Bem sei que, por tua atividade, necessitas estar concentrado mas, meu motivo é relevante. Acaso viste uma mocinha com ares desconfiado, passar apressada por aqui? Tinha ela os cabelos despenteados e estava pobremente vestida. Dize-me a verdade e tua sorte será boa, ou então, por Poseidon, nenhum peixe morderá tua isca.

Pescador – Divina Providência! Ele não me reconheceu. Devo agir como se outra pessoa fosse. Perdoa-me estrangeiro mas estava tão ocupado com o meu trabalho que nada vi. Possa eu jamais pescar outro peixe se acredito que esteve aqui, ainda há pouco, alguma mulher ou qualquer pessoa.

Mercador – Não tenho porque desconfiar do teu testemunho. Obrigado, meu rapaz! Devo agora continuar meu caminho admitindo que realmente minha escrava desapareceu e que a perdi para sempre.

Pescador – Potentoso Poseidon, minha eterna gratidão! Devo agora reassumir minha antiga forma e voltar para casa.

Flora e Fauna – Criança, que esperança ainda carregas neste teu coraçãozinho inocente? Amor filial! Por mais terrível que possa ter sido o passado, guardamos dele sempre uma imagem nostálgica, talvez a esperança de recuperar o afeto perdido. Mas já é chegado o fim. Nosso desastroso personagem chega finalmente ao limite da sua pena. Que tudo se consuma antes que ele vire herói por ter sofrido tanto.

Homem – Avassaladora Fome! Destruídos estão meus campos, meu gado e minhas economias. Bebi toda água dos meus reservatórios. Até as ervas daninhas misturei-as às migalhas e produzi sopa infecta para saciar meu apetite. Até as vestes comi e nada. Nada consegue aplacar esta ânsia. Não me resta mais nada senão meu próprio corpo. Calamidade! Fui inoculado alguma espécie de bactéria desconhecida. E por mais que dê tratos à bola não consigo decifrar o enigma. Fiz algo que jamais humano algum tenha praticado? Que importa isto agora quando sinto meu fim próximo. Que dura é esta carne! Devo cortá-la e cozinhá-la. Começarei por esta dispensável mão. É assim que acaba um homem, devorando-se a si mesmo.

Flora e Fauna – E foi assim. A fome obrigou Erisíchton a devorar seus próprios membros, destruindo o corpo para alimentar o mesmo corpo. Enfim, conseguiu libertar-se. Quisera os deuses que todos os humanos, partículas criadas para favorecer o equilíbrio universal, não se arvorassem em senhores. Poderosa Consistência! Vital tem sido tua paciência, preservando em nós a unidade de espírito para que tenhamos condições de escolher sensatamente. Em teu nome, vasta é a matéria e eterna seja a alma. Aceite estas libações para que a concórdia novamente de estabeleça entre todos os elementos da vida. Cantemos, dancemos, irmã! Hoje foi um bom dia. Quisera todos os humanos consagrem – e os deuses não intervirão – seus pais puros sentimentos na exaltação da Natureza. Cantemos, dancemos, irmã! Hoje foi um bom dia. Mas nem todos são iguais neste mundo de contrastes. Se um ora, outro blasfema. Se um cria, outro destrói. Não nos enganemos, irmã. Hoje foi um bom dia... Amanhã quem sabe?!


2 comentários:

  1. E assim se completa a tragédia de quem tudo quer. Bonito texto, cheio de reflexões!

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  2. Há fomes indizíveis, fomes que consome tempo, vidas amores.

    Estamos vivendo em tempos assim, onde temos fome de novos carros, casas e roupas, e deixamos que o tempo leve embora a presença de nossos filhos, o amor de nossos amantes até nossa própria fé acaba perecendo.

    Teu conto é fantástico Paulo, dá gosto de ler-te!

    Abraços e ótimo final de semana

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