domingo, 7 de novembro de 2010

Maio

Eveline era mãe de dois meninos. Viúva e funcionária pública aposentada por invalidez, assou e comeu durante toda a sua amassada existência.

O mais velho, mais responsável, puxou mais a ela que ao pai, cuidou de cedo ir à luta e trouxe boas colheitas para dentro de casa. Eveline se ria, banguela que era, cerca de meia hora por semana.

O mais moço, meio rude, meio pop, pulou de galho em galho até que encontrou a filha do fazendeiro/promotor de justiça e não tardou: cuidou logo de embuchá-la.

Ai, meu deus, onde é que tu estavas, senhor!? Como é que, sendo onipresente e onisciente, não viste a burrada que o caçula fez? Nem para avisar no 4B, um telefonema pra vizinha bastava, carta anômina que fosse, mas que tivesse dado o ar da graça naquela fatídica noite, três de junho, 92. Pois é, avisada a tempo, Eveline teria partido qual onça para cima do querido safado, dado uns bons trompaços naquela cabeça dura... Ô menino metido a fazer o que não tem serventia, meu deus!

Mas Eveline, a costurar estava, costurando teria ficado não fosse a agulha, num ato de rebeldia construtiva, espetar-lhe o dedo. Não é dito que deus escreve certo por linhas tortas? Bem, foi isto que Eveline pensou naquela hora: aconteceu alguma coisa, aconteceu alguma coisa com o Bigú. E olhou para o relógio de parede, na esperança de que ainda fosse horas, na esperança que o tempo ainda não se tivesse esgotado.

Eveline só conseguiu respirar no dia seguinte quanto a polícia chegou querendo saber se era vero que dali partira o tipo encontrado no meio do canavial com o pênis enfiado na boca. Respirar é modo de dizer, Eveline devolveu ao ar todo o ar que tinha mantido represado nos pulmões durante toda aquela noite e quem sabe durante toda a história da raça em luta com as perdas irreparáveis e a estupidez humana.

Porque? Porque? Porque? Havia motivo? O cabaço daquela menina valia tanto? Porque, Seo Honório, porque? Foi causdiquê? Só porque era o meu menino, não foi? Mas ele cantava bem, o meu neguinho, seo Honório, era um menino afinado, tinha intimidade com as notas... O senhor matou o meu passarinho, seo Horório. E não contente com isto, o senhor mutilou, de modo vil, o meu bichinho. Me devolve o meu filho, seo Honório. Me devolve o meu filho que a tua menina engoliu. Fique com a tua honra, seo Honório, mas me devolve o que é meu de direito.

Seo Honório discursou no plenário, puxou dos alfarrábios sofismas calibrados, vetustas palavras abusadas, tudo para provar que sua filhinha havia sido seduzida, enganada, entorpecida e estuprada por um desqualificado sem eira nem beira que, não tendo mais o que fazer na vida, deixou-se matar só para não encarar a sua autoridade de pai, cidadão, servente de deus e da pátria. E em assim sendo, apelou para o inalienável direito (dele) de interromper voluntáriamente aquela gravidez.

Não, seo Honório, esta criança é minha. O senhor não vai matar o meu filho duas vezes, esbravejou Eveline no alto das suas tamancas no que foi contida pelo meretíssimo que exigia mais respeito com a corte.


9 comentários:

  1. Cada mês melhor que o outro. E esse é de uma história que deve ter-se repetido muito por esse país afora.

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  2. eu conto um conto, você conta melhor, é incrível parece que estou revendo tantas outras já conhecidas minhas, mas com seu modo de descrever chego até ver os fatos.
    Gostei do que você comentou na minha homenagem de parabéns pela passagem do aniversário dele.
    E por falar nisto , sabe que nada sei de você? Vamos dar um jeito nisto?
    Um abraço
    Íris Pereira

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  3. Bom dia Paulo!
    Que lindo o conto, como sempre né!
    Bjão pra vc
    Gena

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  4. Arcoiris No Horizonte disse...
    Destino ou Casualidade: As vidas se cruzam

    Estou aqui como sempre pra visitar, mas aproveito e agradeço sua visita e responder sua pergunta sobre o Eldenê.
    Paulo, aos 8 anos eu fui bulida por um rapaz, você entende? não quero dizer o termo grosseiro...Preservei-me de qualquer sentimento de sensualidade ou sexo, eu agia como se a unica função da parte íntima era fazer xixi. De repente ali sentada sem nenhum sonho, apenas olhando as formigas carregarem pedacinhos de folhas, admirando suas forças e ao mesmo tempo tão frágeis perante os seres maiores, eu escuto que vou ser esposa, mulher, deitar, casar, ser bulida, beijada, passou-se um turbilhão de pensamentos que nem pensei se ia pisar nas pobres formigas e dirigi-me até lá de onde vinha voz, mas ia quase voando, pois não sentia meus pés, minha vontade era de bater tanto nele, mas ao olhar aquele moço franzino, pequeno, faltando um olho, muito embora eu reparei primeiro pra sua boca depois o detalhe do olho, ou sei lá o que realmente me fez parar e reagir com indiferença que já era minha marca. A petulância veio do achar atrevimento demais já me ver e pensar em tocar-me, entendeu? Em minha cabeça não era elogio, mas ao vê-lo de perto e olhar pro seu olhar e ouvir sua história, contou que dias antes de viajar sonhou a mesma cena que acabara de ver, e deu detalhes do meu vestido que não era visível pra quem estivesse onde ele se encontrava. Eu vestia um vestido amarelo com listas finas brancas e abaixo do peito tinham 4 fitas azuis horizontais...
    Escreverei sim um conto, pois toda minha vida é parte de contos, onde nunca precisarei usar a fantasia ou acrescentar emoção.

    22 de outubro de 2010 05:14

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  5. É amigo, e isso aí ainda ocorre muito em nosso Brasil profundo. Não tão bem contado, mas é uma triste realidade, ainda.

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  6. Pois é e como leu, tenho agora minha irmã e eu e cada uma formou sua própria família e estamos fazendo nossa historia...e assim continua a historia. A minha foi bem chata, aborrecida, cansativa, tive motivos para parar na metade, porem recebi incentivos de amigos como você , por exemplo, vou confessar-lhe não sei se leria uma historia dessas, não. Rsrsrs. Muito chata.
    Ha falei de você pto Antonio Correia e ele leu seu comentário e fez um agradecimento e se pós a seguir seu blog. Certo?
    Mas cá pra nós, acho que eu disse uma coisa, mas na verdade entendi outra, não quis por em questão... Sou boba não.
    Tu pareces um principe, mas está mais para rei
    Um beijo meu rei

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