domingo, 21 de novembro de 2010

Julho

Dorinha era moça bonita, jeitosa, falava e se vestia bem, cheirava que nem flor de laranjeira misturada com jasmim, alta, atlética, pele de veludo, cabeleira preciosa, dentes e unhas afiadamente cintilantes, covinhas num sorriso encantador mas, tinha um defeito: era desaforada, insolente.

José Wanderley era caxias, bem posto, relações excelentes, uma ruma de diplomas e fotos com personalidades na parede, citações em colunas sociais, trânsito livre, se não em todos, ao menos nos mais atapetados e limpinhos corredores e salões de portas escancaradas ao timbre do seu heráldico nome, estufava-se por compreender das armadilhas das aparências e dos meandros desta vida cheia de salamaleques e nove horas porém, arrastava um defeito: gostava de xumbregar.

Aplica-se aqui o ditado: juntou a fome com a vontade de comer. Dorinha queria mais, muito mais e Zé também, ah como queria, tremia de tanto querer. Conversa vai, conversa vem, ficaram íntimos, daquele tipo de intimidade que nem às paredes se confessa. Ele, a gozar daquele deleite, tratado a pão de ló, a ambrosia, a lambuzar-se naquele néctar qual menino que descobre todas as fantasias de um vasto e fecundo mundo de delícias. Ela, a dar corda e muito mais, pois desejava mais, via mais e queria além mas, o negócio, aquele aceite, que faz a alegria dos causídicos, notou, cuidava ele de, mineiramente, empurrar com a barriga um tantinho avantajada.

Quando é que vamos nos casar, Vavá?

Logo, Dorinha meu bem, logo. Deixa o tempo melhorar.

Mas tempo era coisa que Dorinha não tinha lá em muita conta. Começou a encontrá-lo à saída da repartição, no bar onde se reunia com os colegas para o repiaus, na igreja onde rezava o terço toda terça na companhia do devoto grupo do Sagrado e Trapassado Coração, até no cemitério ela apareceu, na primeira sexta do mês, onde ele ia, religiosamente, depositar flores no túmulo da estimada, saudosa e falecida esposa. E quando sentiu que era hora de lançar a carga da brigada ligeira, chegou em pleno expediente tonitroante muito afim de comida japonesa e de uma esticadinha ao chou do Vando, lá no Chinelão.

Wanderley pesou, mediu, isolou as variáveis, riscou e rabiscou umas equações, consultou gráficos, tabelas, planilhas, traçou uma curva de tendência logarítmica, fatorou os resultados e teve diante de si um quadro, se não dantesco, ao menos digno de qualquer filme catástrofe.

Foi bom? Foi. Mas chegou a hora do basta.

Euzinha descartada? Qual meia furada? Vandeco, fala sério, você acha que pode se divertir, comer do bom e do melhor, repetir o prato sem qualquer cerimônia e depois, assim na maior, chegar pra mim e dizer que não quer mais, que simplesmente acabou, que finito, caput? Olha, o meu tio, que o eterno o tenha em bom lugar, sempre dizia: melão é doce mas apodrece fácil.

É... meu professor de direito canônico gostava de repetir: rapadura é doce mas não é mole não.

Matá-la ali mesmo, diante de seleta audiência? Apertar-lhe a garganta, não!, simular acerto de contas, plantar provas, forjar ligações com traficantes, ou quem sabe afogá-la em banheira de hotel, eletrocutá-la com o secador de cabelos, talvez servir-lhe comida estragada, uma boa opção seria fazê-la beber o Tietê... Com uma boa banca, (e conhecia trozentas), poderia pegar uns quinze... cumpriria três em domicilio... Ah, a vida é bela!

E pode tirar desta sua cara sem vergonha este ar de quem maquina uma conspiração contra minha pessoa, sei muito bem me defender, viu! Está vendo estas unhas? Já abriram uma avenida na cara de um sujeito duas vezes maior que você, seo moço!

Dorinha, fale baixo, estamos em público, mulher!

Fala baixo é o cacete! Você me seduz com conversa mole e agora pede para que eu fale baixo? Pois sim, vou gritar a plenos pulmões para que a secretária, o oficibói, a moça do café, os porteiros, os faxineiros, os seguranças, teus pariceiros, o teu chefe, o chefe dele, o chefe do chefe de todos os chefes - raios que os partam todos; para que a cidade, o estado, o país, o mundo, o planeta, o universo e o fundo do fundo de todos os buracos negros desta e de todas as galáxias deste contínuo espaço-tempo saibam o pinto pequeno que é o senhor José Wanderley Mendonça de Albuquerque Figueiredo e Morais. Enjoou da fruta, neném? Agora vai ter que comer o caroço.

Acordo feito, bufunfa na bolsa, Dorinha saiu esbravejando que não se faz mais homens como antigamente.

Pior não foi o desembolso da grana, pior foi figurar no ranquin dos comédia dez mais da praça, concorrente seríssimo ao troféu “Pau de Galinheiro” distribuído anualmente aos bafejados pela sorte com a sublime e hereditária graça da imunoimpunidade.


3 comentários:

  1. As relações existentes nesta nossa sociedade são pungentes... rs. Mas cá entre nós, esta Dorinha é um encanto!

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  2. Passeastes em meus caminhos tão manso, que nem nas minhas pegadas pisastes. Pareces mesmo meu rei.
    Obrigado querido rei, pelas visitas.
    Estou tão abandonada, se não fosse tua visita, ficaria eu na janela a esperar, a esperar, a esperar...
    Beijo

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  3. Essa Dorinha é um perigo, Paulo Laurindo! Mulher assim é pior que chumbinho com guaraná. Bem feito pro nome extenso: foi mexer em casa de marimbondo e quis sair sem ferroadas! Deu no que deu (ou será que no que comeu?).

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