domingo, 17 de outubro de 2010

Fevereiro

Alcides nunca castigou um filho.
Nunca precisou.
Nutriu, educou, instruiu os noves.
A sua venda de secos e molhados já mandara dois para a faculdade.
E não foi à custa de pesos falsificados, não!
Que Alcides, podem duvidar, nunca vendeu gato por lebre.
Nunca ninguém ouviu de Alcides uma só palavra desagradável, nunca ninguém presenciou um gesto seu que pudesse ser censurado.
E olha que ele se meteu em poucas e boas que não me autorizo contar.
Não era covarde, não.
Não enjeitava parada mas era justo.
Homem de palavra.
Ao que consta, frequentou a escola até o terceiro primário, teve logo que pegar no pesado depois que perdeu o pai.
Quando não tinha nada para dizer, sussurrava: tudo passa!
E ia abraçar a mulher que o acompanhou, sem culpa e sem reparos, durante toda a vida.

Alcides só tinha um porém, que não dá pra ser perfeito em tudo.
Gostava de caçar.
Caçava de tudo: veado, teiús, paca, tatu...
Fazia parte de um grupo fiel, uma confraria de caçadores, tinham estandarte e tudo.
Nas paredes da venda, ficavam expostas as armas, as cartucheiras, os gibões, os chapéus de couro... de vez em quando duas ou três emas enfeitavam o balcão como provas do sucesso.

Pois é, além da paixão pelo nobre esporte da caça, exibia também dotes de folião.
Nos quatro dias de Carnaval, juntava os filhos e os amigos para, munidos de latas velhas, batucarem pela cidade uma indecifrável marchinha: “Quebra, quebra, Quabiraba/Quero ver quebrar/ Quebra lá que eu quebro cá/ Quero ver quebrar”.

Não havia coreografia, não havia evoluções, não havia gingado, só aquele passo arrastado, xelepe, xelepe, xelepelepe.

O mais interresante é que faziam esta exibição vestidos a caráter, com todos os paramentos daquela instituição, uniformes, estandarte e algumas caças recentes pendurados pelos quartos.

Detalhe: por cima das indumentárias de guerreiros, peças e penduricalhos feminimos cedidas, meio a contragosto, pelas esposas, filhas, mães e irmãs.

Ay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás!


5 comentários:

  1. Este Alcides é grande folião. Conto emblemático, Paulo.

    Ah, esta marchinha é boa. Se não existir, deveria. Já a vejo entoada nos blocos de rua das ladeiras de Santa Teresa, Morro do Senado e Largo da Carioca. Pularemos o próximo carnaval juntos, Paulo; assim, entre uma cerveja e outra, vamos tecendo alguma crônica ou algum conto. =)

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  2. Alcides era uma homem normal para sua época: ético, másculo, caçador. Sem culpas e sem frescuras. Nossos pais foram assim, Paulo Laurindo. E graças a eles, felizmente, somos homens decentes. Malgrada a caça a emas e teiús, na época coisa muito normal. Hoje estamos um pouco deformados pelo "politcamente correto".

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  3. Nossos país todos foram Alcides, e era tudo muito normal, portanto que quando de suas mortes nós os filhos contamos os casos com graça e sem rancor.
    Sabe que eu já fui igual ao Alcides( ou ainda sou) eu nunca sinto culpa de coisa alguma, por exemplo: Estão me malhando pelas fotos nuas que postei nos blogs...sem culpa.
    Você deveria escrever contos. Lembra?
    Miris

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  4. Vidas que se desenrolam sem complexidades, culpas maiores, dores desnecessárias. Simplicidade e verdade. Encantei-me com teu texto, Paulo. Abraço fraterno.

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  5. Voltei à infância minha, lá em São José do Calçado dos velhos e saudosos carnavais. Obrigado " Alcides"! Texto comovente...

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