sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Será Que Vai Chover?

536!... Falávamos? Ah sim, da sensação de inutilidade... Sabe, existe uma ou duas coisas que fizeram meu coração palpitar de um jeito inesquecível... Se aquele momento tivesse perdurado... Mas o momento acaba, passa, como tudo passa, fica uma saudade arretada, o tempo todo, o coração dando voltas e a mente fixada naquele momento. As coisas boas a gente não esquece, não é verdade?

Pensei numa coisa agora, não tem nada a ver mas, me passou agora pelo pensamento, posso falar? Não te chateio?, porque se estiver mudo de assunto... Se você não quiser ouvir, paro, não ficarei ofendido se você não quiser ouvir, é um direito seu, você não tem obrigação, afinal você não me conhece, não sabe quem sou... O que sabemos de alguém, né? Que esse alguém tem um nome, mora em algum lugar, deve ter família, um passado, um presente, quem sabe um futuro mas, é só isto, nada mais... Aliás quem conhece quem deveras neste mundo... Já reparou que tem pessoas que vivem juntas anos a fios e um dia bum: Oh, nunca pensei que você fosse capaz disso! Não é assim?

Ocorreu-me um dejá-vu. Lembrei de um momento que ainda não vivi mas tenho a sensação de que vivi, é uma especie de transe, como se em algum momento do passado ou do futuro eu tivesse sido outra pessoa e que vem agora pergunta, e aí: sonhas ou és sonhado?... A nossa mente tem uns roteiros esquisitos, olha tudo como se fosse uma camera, está em todos os tempos e lugares sem o menor pudor, mas o corpo também tem memória, o corpo guarda lembranças, o corpo enxerga e às vezes não vê com bons olhos o que a mente tenta dizer... Mas, pensa comigo: quando morremos morremos, não é? Corpo e mente vão juntos. Ora bolas, então porque vivemos com a impressão de que corpo e mente existem de modo separado, como se um pudesse esconder coisas do outro, como um casal que não costuma fazer confissões um ao outro, que vivem juntos mas velam ninharias, sabe como é?

537!... Qual o número da tua senha? Ainda temos tempo... Desculpe, me perdi novamente, onde é que estava mesmo? Ah, falava da sensação de inutilidade, não é isto? Que a mente pensa uma coisa e o corpo faz outra, que vivem juntos mas separados, que os dois juntos escondem tantas coisas que nem Freud explica, que costumam brigar entre si, que dá a impressão que um quer ver a caveira do outro, não é assim?

Integridade! Você é um cara íntegro? Não íntegro no sentido moral mas holístico. Você se sente completo, inteiro? Não precisa responder, se não quiser. Está sempre faltando alguma coisa, não é? Somos críticos ou condescendentes demais com nós mesmos, não é assim? O equilíbrio é tão dificil! Sabe, talvez é melhor que seja assim, que sejamos parte, pedaços... penso que somos tal qual uma pintura, uma sinfonia, um poema... Inacabados... Que a cada dia voltamos e acrescentamos um retoque, uma linha, uma letra, um toque novo, diferente... Cada dia vejo como a possibilidade de se acrescentar mais um traço a este retrato que nunca temos pronto.

Sabe uma brincadeira que gosto? Chamo de geografia da memória. Imagino um espaço e permito que a emoção da lembrança recrie cada detalhe baseada exclusivamente na sensação. Imagino, por exemplo, uma enseada. Aquela enseada que imagino é o encontro que tive com uma turma no tempo do colégio. Nunca estive numa enseada com a turma do colégio. Mas aquela sensação de integridade que eu possuía quando estava com a turma transforma-se naquela enseada que crio mentalmente. Devia aprender a desenhar, não é? Deixa prá lá. Minha memória é feita de sensações e minhas sensações são memórias de geografias imaginárias.

538!... Ia dizer alguma coisa? Diga, não se acanhe, gostaria de ouvir. Esta conversa miolo de pote te incomoda? É que nos dias de hoje é tão dificil encontrar quem nos queira ouvir. Um dia disseram de mim: jagodes! Pode um negócio desse? Como é que tem gente neste mundo capaz de injuriar outrem com uma palavra tão dificil. Não encontrei coragem para buscar o significado desta palavra, senti como uma pedrada, sabe como é?, machucou, doeu, mas vamos esquecer tudo isto, eu já esqueci... É quase hora!... E nem falamos do tempo, da política, das mulheres, do futebol, das utopias... Só não falaríamos de carro, nada entendo de automóveis. Você não é de falar muito, não é? Olha, desculpa, não seria comum sairmos daqui sem que falassemos do tempo, da política, do futebol... No pouco tempo que temos estas questões bastariam, já que o nosso encontro é para ser esquecido. Não gosto de conhecer pessoas em fila, não gosto de correr o risco de parecer esquisito.

Já se sentiu esquisito alguma vez? Digo, ter aquela sensação de que é tudo, tudo, inclusive nós mesmos, tudo é esquisito. Já se perguntou porque temos duas mãos, cinco dedos em cada, dois olhos, uma boca, nariz? Já reparou que coisa esquisita é o pé? Às vezes perco horas olhando para o pé... esquisito, não é? Você sente assim?... Sabe o que descobri outro dia? Porque somos tridimensionais? Porque se fossemos bidimensionais, ao injerimos alimentos e defecarmos os resíduos nos dividiríamos ao meio. Já pensou: comer, cagar e morrer? Seria terrível, não? Penso que a humanidade de fato começou a viver a partir do momento em que conseguiu enxergar em perspectiva. Imagine pinturas antigas com aquelas figuras chapadas, a impossibilidade de movimento, de dinâmica, de sobreposição de planos... Aí vem o Renascimento, cara foi demais! Como deve ter sido fantástico para as pessoas daquele tempo poder enxergar em perspectiva. Hoje falamos da quarta dimensão. O cinema é a arte em quatro dimensões. E os cineastas já consegue produzir filmes em cinco dimensões. Já tem neguinho aí falando em oito, dez dimensões, já pensou?... Ainda não passei da terceira. Não consigo ainda entender esse negócio do tempo. Sei apenas que o tempo é presente, passado e futuro. Mas e se isto for apenas mental? Quero dizer, se o tempo não existir fora de nós que pensamos o tempo? Penso que um dia, quando conseguir entender o tempo perderei esta sensação de esquisitice, de me sentir um inútil, que não conseguir fazer nada direito, que não ser capaz de trocar duas ou três palavras com alguém sem passar a impressão de ser um completo esquisito.

539!... É a tua vez. Prazer te conhecer. Desculpa qualquer coisa.... Cara legal. Dia quente, não? Será que vai chover?...


2 comentários:

  1. Hahaha...muito bom, mas que a mente mente, lá isso mente. E engana o corpo, inocente!

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  2. Incrível este texto, muito bom mesmo! Aliás, revelador.

    Um abraço, Paulo.

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