terça-feira, 20 de julho de 2010

De Dentro Para Fora

Meu avô sabia fazer de um limão vários litros de limonada. Desde cedo, solto na pirambeira, barriga inchada frieira, mercanciava pipoca, puxa-puxa e cocadas. Aprendeu na porrada sem nunca ter frequentado um banco de escola. Casou, teve filhos, montou freguesia. Com uma tropa de burros vagava pelo sertão comerciando cordel, agulha, misse, fazendas, rendas, bordados e tudo o mais que fosse passível de troca por notas de mil réis ou moedas de tostões. Dizia aos descendentes: quatro operações bê a bá assinar o nome e basta, a exibir uma cartilha ensebada dos novecentos e lá vão pedradas. No batente da porta principal de entrada na casa, uma bimba de boi trançada fazia às vezes de chibata. Apregoava que educação vem de berço e que para se ser doutor não se precisa de livros e que leitura demais enlouquece, amofina, dessem uma boa olhada no misael, aquele xodó da mãe dele, pobre coitada, aquele da mufa queimada de tanto chafurdar em alfarrábios tomos e compêndios o local exato do encalhe da velha arca do noé, vê se isso é lá ocupação de homem, o que passou, passou, quero lá saber do sexos dos anjos, se adão comeu maça ou romã, se o dia do juízo final é depois de amanhã, se do chumbo se faz ouro, se gavião dá dentada, vê lá se eu não pegue no pesado vai ter comida abrigo alpergatas para todo mundo nesta casa, aqui não, izabel, aqui a necessidade manda e utilidade obedece.

Contava depois das seis que conhecera um galego oriundo de angola que por aqui aportara na maior cara lisa e uma coragem arretada, a mão direita na frente, a esquerda logo atrás e que dormiu durante um bom par de noites em cima de engradados de cerveja tendo um saco de aniagem por coberta, aos sábados lavava e secava as únicas calça e camisa num velho fogão de lenha enquanto tomava banho de caneca nos fundos da mêágua que servia de depósito e dormitório pros empregados da loja de carregação do seo nequinha, agora vai lá ver, é dono de engenho lanifício curtume e padaria, tirou a família do buraco, tem mansão, conta no banco, marinete, dúzias de boi no cercado e cinco advogados para administrar-lhe o legado. Quem se importa que o digam ladrão, e daí se tem dois pesos e uma medida, só vai pra frente quem sabe onde o calo lhe dói mais, oportunidade é o que não falta nesse mundo de donos gerentes e capatazes e encerrava o sermão com velha frase desbotada: tenham tento e tomem tino, cobra que não anda por acaso engole sapo?

Adorava um almanaque o meu avô, sabia até de marés lá nas brenhas do sertão, pra que, perguntava o povo, ele dizia sei não, vai que o sertão um dia vire mar e o mar acabe sertão, além do que preciso saber das cotações, das efemérides e das festas dos barões, fatos que apontam exaustivos cuidados no ramo das necessidades nessa terra de caolhos, sorte a minha trazer os dois olhos muito bem arregalados. Filosofo, meu avô e prático e cético: essas lambanças de academia é pura conversa de padre e todos conhecem a fama dos que rezam ladainhas. Duas pragas neste mundo assolado de porteiras, padre e professor, chupins do esforço alheio às custas de filigranas e lições de brocados, tudo coisa de mulher, que profissão de cabra macho é produzir e vender.

O velho gostava de arengar na praça: o que vale mais, experiência ou educação? O pau que nasce torto não tem jeito morre torto, mais vale um salário na mão que cinco canudo enrolado e não lhe abalava a ausência dos esses, não conhecia plural, viveu no singular estado de que tudo sabia daquilo que só a ele competia. Quando minha vó morreu, a família evaporou e meu avô tal qual o Paulo Honório deitado num jirau, embatucou no porque a gente nasce, cresce, vive e um dia, sem que nem pra que, simplesmente morre.

Tudo isto para dizer que, ao ler num blog de literatura o seguinte achado “estar preparado não é ter diploma, todos sabemos de um personagem que não tinha diploma e chegou a presidente da república”, foi o mote pra eu fazer uma visitinha ao meu avô e acabei por pensar que a grande coisa que tu, meu estimado Lula, agora feito ícone do self made manismo, poderia fazer para entrar definitivamente pra história como um verdadeiro benfeitor e líder inconteste da nação brasileira, seria prestares vestibular numa faculdade pública de engenharia mecânica, cumprir os créditos com louvor e mostrar com todas as letras que caco velho sempre pode dar um bom caldo e que nem só de celular, aipode, bluray e televisão de plasma vive o homem. Talvez assim possas fazer pela educação o que fizeste pelo econômico porque, contigo aprendi: as verdadeiras mudanças são aquelas que acontecem de dentro para fora.


4 comentários:

  1. Linda crônica! Educação formal, sabedoria popular... gosto demais desse hibridismo e você o realizou com maestria. Ainda hoje estava ouvindo a música "Mágoas de boiadeiro", na voz de Sérgio Reis (Pode rir! Meus filhos também riem quando escuto minhas modas de viola.), e pensando que é tão bonito isso de fazer poesia com matéria-prima às vezes tão miserável; transformar a rotina em algo louvável. Ah, e adorei quando você disse: "Paulo Honório deitado num jirau"! Imaginei justamente as diferenças entre os protagonistas de "São Bernardo" e "Macunaíma". Nessa hora, não sei bem por que, senti que minhas férias estão me parecendo tão curtas para o tanto que gostaria de aprender nesses poucos dias!...

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  2. Meu tio, Féres, veio do Líbano, mão na frente, outra atrás, e vagou por esses interiores, mascate, depois trouxe meu avô,e estamos aí.

    Mas vim aqui foi pra te desejar um feliz aniversário e te agradecer por tantos bons momentos aqui nesse troço doido, que une e desune o mundo. Foi um grande prazer ter te conhecido, e espero que resolva aparecer por aqui. Será uma honra! Felicidades, bom Paulo!

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  3. Bela crônica, Paulo Laurindo. A sabedoria popular, milimetricamente enquadrada no avô, mostra que o povo sabe muito mais do que sonha nossa vã infilosofia.

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  4. Pois é, rapaz; este teu texto é uma reflexão até cruel de contextos de sabedorias... Embora tudo se saiba e nada se saiba, e, muita vez, bom é saber o menos possível... No que seu velho avô, provavelmente, dir-me-ia: - Só os idiotas são felizes, moço tolo! Diria sim, quanto maior a idade maior é o poder de sopesar as reflexões.

    Que surpresa! Juro que gostaria de ver a querida Márcia entoando ao berrante o Menino da Porteira; fascinante tal cena!

    Um grande abraço.

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