domingo, 28 de março de 2010

A Máscara Nossa de Cada Dia

Acordou sentindo falta dos três perdidos sentidos. As orelhas ainda estavam ali, salvas. A face não doía mais. Só doía quando lembrava. Do dia em que quebrou a cara. Boca, nariz e olhos viraram pasta, viraram nada diante daquele poste. Restaram apenas a cara lisa, a cara dura, o vazio e os pensamentos. Ainda era alguma coisa.

Tateou até a comoda e, diante do espelho, gaveta após gaveta, buscou uma máscara, dentre as dúzias que possuía. Virou, mexeu e sentiu difícil encontrar uma que caísse melhor ao dia que havia pela frente. Relaxado, embora sem opções, pensou que estava já na hora de comprar uma nova. Não... Esta não... Usei anteontem... Talvez... Uhn... Um pouco gasta...

Plástica? Quem falou? Nem pensar. Deforma. Irreversível. E uma tatuagem? Não, tatuagem não, é muito estática. Algo mais dinâmico, cogitou. Devia existir algo assim, uma massa especial, algo, sei lá, que se possa aplicar sobre o rosto e sair moldando conforme o humor, alguma coisa flexível e fácil de aplicar, moldar, retirar, moldar de novo, algo reutilizável, algo que, findo o dia era só puxar, raspar os resíduos, botar tudo numa maquininha, tipo reprocessador, misturado com um pouquinho do pó que se podia comprar junto e que serviria para manter a consistência e aumentar a durabilidade, ah, não pode esquecer das duas gotas da fórmula secreta e, eureca!, nova massa, tudo de modo bastante econômico, rápido e prático. Claro que teria que haver uma máquina, é verdade, o resto seria refil, dois ou três pacotes do pó e um vidrinho de algo com nome tipo XY2H Ultra Prime, daria para um ano ou mais. Beleza, não? Porque não pensaram nisso antes?

Ficou de produzir um relatório detalhado com as informações básicas, só as básicas porque não tinha nenhum conhecimento de química ou física ou biologia, isso era com os químicos, físicos e biológos da indústria para onde teria que enviar imediatamente o relatório, antes que algum esperto tentasse lhe passar a perna, afinal não dava para confiar em ninguém hoje em dia, era melhor ficar na moita, boca de siri, nada de abrir o jogo ou bater com a lingua nos dentes, contar para alguém nem pensar, nem à própria mãe e escolher rapidinho qual indústria, que tipo, talvez uma quem sabe, alguma indústria farmacêutica, não, farmacêutica não, não era remédio, ou era, não, tem que ser indústria de cosmético, não cosmético não, sim, de cosméticos sim, porque não? Um material dessa qualidade seria mais apropriado à industria do ramo de cósmeticos e afins.

Topariam na hora, era só enviar o relatório mas, pensa, o importante era que fosse um produto cem por cento natural, claro, e da região amazônica, nacional, um produto genuinamente nacional e natural, cujo princípio ativo fosse extraído de uma plantinha qualquer, dessas que ninguém dá nada e deixa de lado, passa batido e de repente um cientista americano... Não americano não, é muito manjado, um cientista checo, é, um cientista checo, caras que vivem numa cidade chamada Praga só podem ser sérios e caras sérios normalmente, pensa, não estão lá tão ligados nessa coisa de status, poder pessoal, grana, essas coisas que a gente logo associa aos americanos, do norte é claro, claro que tem exceções, é evidente, em todos os continentes, deixa prá lá, bem, o fato é que um cientista checo em viagem de recreio pela Amazônia (estava indo muito bem) visita uma tribo lá nos cafundós da selva, uma tribo ainda em estado bruto, quer dizer, estado puro, ou melhor, estado selvático quase puro, e assim como não quer nada, acaba sendo apresentado a uma plantinha qualquer, insignificante, sem qualquer atrativo, de nome impronunciável e classificação duvidosa, mas que acaba por provocar uma verdadeira revelação, tudo por conta de uma sessão de xamanismo praticada durante a pororoca, para reconstituir as pálpebras do filho mais velho do cacique, que tinha assoprado um fogo contra o vento, imaginem!, e ficou com a cara muito estranha, precisando de um conserto urgente, nossa! pegou mal na tribo tal desatino e como o jovem é o sucessor imediato do pai no cargo máximo da aldeia, trata o velho chefe de convocar os poderes do pajé no domínio da erva que ninguém no mundo civilizado conhece.

O ritual todo desperta a curiosidade cientifica e acadêmica do cientista checo, algo lhe bateu extraordinário, uau! aquilo era mais que descoberta, era um achado científico que irá mudar a face da humanidade, e trata logo de fazer um exame preliminar munido de um aparelhinho, de aparência despretenciosa, fabricado na China e adquirido num bazar turco na periferia de Istambul, cara! última palavra em matéria de tecnologia de ponta no exame rápido de substâncias ou composto de substâncias minerais ou vegetais passíveis de gerar alguma coisa boa e proveitosa para a humanidade (estão vendo porque o cientista tem que ser um checo?) e que, por acaso, vejam só, trazia dentro da mochila. Logo o jovem cientista checo, recém divorciado, às voltas com a pensão de dois filhas e pressionado pela chefia do departamento de química da Universidade de Praga para que entregasse logo sua tese sobre novos compostos orgânicos e/ou inorgânicos capazes de trazer contribuição significativa no campo de novas resinas de multíplos usos, redige ali mesmo um contrato informal, no seu caderninho de notas, no qual o cacique se compromete cultivar, colher, fazer um rápido processamento e exportar o pozinho extraído da plantinha fenomenal, enquanto ele, o cientista checo, terá que produzir a fórmula secreta lá no laboratório improvisado na área leste, nos fundos da oficina mecânica do campus da Universidade Karlova, a mais antiga da Europa Central.

Ato contínuo, o pré-acordo é ratificado e endossado por uma ong holandesa defensora dos direitos dos povos à independência total sem intervenção de qualquer natureza, que também estava de passagem por lá naquela hora, na figura do seu secretário executivo que, por acaso, ouve toda a conversa do jovem cientista checo com o cacique ali na barranca do rio, que pode, porque não, ser o próprio rio Negro, onde todo mundo vai pescar, dar uns mergulhos e jogar conversa fora e não tarda mexer alguns pauzinhos através de rápidas e decisivas consultas via celular do chefe, porque o seu acaba ficando sem bateria, aos membros do conselho superior da entidade sem fins lucrativos, com sede em Amsterdan, e ali mesmo, na barranca do pressuposto rio, sem mais delongas e com todas as garantias possíveis de um pequeno financiamento a longo prazo a perder de vista, convence a todos, o chefe, o xamã, mais dois ajudantes e o cientista checo, que é de bom alvitre criarem uma microempresa que garanta 40% pra tribo, 40% pro checo e 20% para a ong (A Universiade de Praga iria chiar, como comprovado veio a chiar) pelos próximos 50 anos, ficando o cientista checo eleito, por 4 votos a 2 (tem sempre alguém querendo jogar areia na sopa dos outros) presidente da nova companhia, tudo devidamente anotado e registrado num cartório na cidade de Belém (lembrem-se que estamos falando da Amazônia, logo deve ser Belém do Pará e não aquela outra Belém), servindo como testemunhas dois funcionários dos Ibama, um da Receita Federal e outro da Funai, chamados na última hora para imprimirem um caráter legal à trama, trama não, dá um ar meio sinistro, ao negócio parece mais apropriado. E todos trocam cumprimentos, tapinhas nas costas, duas ou três talagadas de vodka (o checo que descolou e o cara do Ibama adorou, afinal não era todo dia que podia se dar o luxo de entornar uma legítima vodka polonesa) e todos viveram felizes para sempre, inclusive ele...

Opa, como era mesmo o seu nome? Como, esqueceu o próprio nome? Tinha um nome, não tinha? Ou será que nome apenas tinham as máscaras? Bom, deixa prá lá, depois pensaria nisto, não parecia muito importante... C, porque não? Pode ser C, simples não, C! A, B ou C... tanto faz. Vá lá, fica sendo C.

Caramba, esse pessoal ia mesmo deitar e rolar. Podia até ver. Nossa, cara, que idéia. Massa para moldagem de rosto! Esse bem poderia ser o nome, não, muito longo, que tal abreviar, que tal: mamoro, não, lembra namoro, não, masmolros, então, melhor, bem melhor. Masmolros. Imponente. Ficou de enviar um e-mail sugerindo o nome, por que não, é um produto coletivo, não é? Quem sabe, levaria algum, porque não! Tudo muito prático, muito prático mesmo e perfeitamente legal. Agora, para usar precisaria de um pouco de treino. O que não iria demandar mais que algumas aulas de modelagem em argila. Nada mal. Poderia até ganhar algum produzindo peças de decoração enquanto ia moldando narizes, bocas, olhos, sobrancelhas, orelhas... taí: porque não pensou nisto antes? Lembrou-se do senhor Batata, conhecem? Também seria legal, não seria? É só comprar umas peças avulsas e ir montando cada caractere. Não, não daria certo, já pensou, ter que fazer cavidades no rosto? Essas cavidades teria que ter medidas bem calibradas. E se comprasse uma peça pirata, que não se encaixasse direito no lugar? Seria um incomodo. O melhor mesmo é massinha produzida com aquela plantinha milagrosa. A cara tá lá, lisa, você vem e aplica uma camada, uma coisinha só, e... O resto é a criatividade que será adquirida com a experiência na argila. Bom, enquanto esse dia não vem, ia com as que tinha mesmo. Se o orçamento algum dia permitisse...!

Já pensara muitas vezes em comprar algumas daquelas máscaras japonesas que são usadas no Teatro No, incríveis não é mesmo? E as venezianas? Bonitas, muito bonitas, mas sem muita variedade de expressões. E as gregas? Fortes, mas pesadas. Africanas não, muito grandes, o material é perecível, exige muito cuidado. Mas do que estava falando? As máscaras nacionais são de primeira, usadas até no carnaval, quer prestígio melhor do que durante o carnaval? Uma máscara aprovada durante o carnaval, fica para sempre, é eternizada, vira modelo para toda uma geração. Não tem passarela melhor quando se quer mostrar uma máscara nova. Nossos modeladores nada ficam a dever aos modeladores estrangeiros. É o tal negócio, temos que prestigiar a indústria nacional. Por isso faz sempre questão de exibir a etiqueta das suas máscaras, orgulha-se daquele made in brasil.

Atrasado e sem conseguir decidir, pegou a primeira que estava à mão e saiu com a barba por fazer, o lábio inferior meio torto e rachado, precisando de um pouco de manteiga de cacau, uma remela esquecida no olho esquerdo, só o cabelo, o cabelo não, o cabelo fez questão de penteá-lo impecavelmente, como faz todos os dias. Certos hábitos não há porque mudá-los, não é mesmo?


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