quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A Coluna do Adroaldo

Nota do Editor.
A partir desta data a Coluna do Adroaldo Macedo não mais será publicada nas páginas deste prestigioso jornal. Hoje, com o devido consentimento da Justiça – em mais uma prova inconteste de que não existe censura no nosso querido país, ilha da mais essencial das democracias - publicamos sua última crônica, infelizmente inacabada.

“Depois daquela tarde em que fui hostilizado cruelmente por um grupo de quatro indivíduos, debaixo da marquise do prédio, meu editor concordou que eu podia preparar os textos no conforto e na segurança do meu apartamento. Achei ótimo. Nunca vi sentido em cumprir horários nesta minha profissão, já que o que o jornal quer de mim é apenas uma matéria, a manutenção da coluna sobre comportamento e uma crônica toda semana e, para isto, independe de onde as escrevo. Mesmo porque o ambiente da redação é um antro de intrigas, cada um querendo consolidar suas carreiras não importando às custas de quem ou o quê. O mercado das almas é o que mais cresce nesta feira de vaidades incontroláveis. Estando conectado ao jornal só preciso cumprir os prazos, não importa se trabalho de manhã, à tarde ou durante a madrugada. Pois é, estou me sentido bem melhor. Acordo na hora que quero, fico pelado zanzando pela casa, bundando o tempo que eu quiser e só vou para o computador no momento em que o texto está pronto na minha cabeça. Nestes momentos, ele sai praticamente acabado, só preciso fazer alguns ajustes e zás... direto para o computador do editor, que daí a alguns minutos me manda um e-mail solicitando uma ou outra correção ou acréscimo.

Estou muito confortável nesta minha nova maneira de trabalhar. Morando sozinho posso me dar o luxo de ser totalmente desorganizado, e isto não me incomoda nem um pouco, trafego muito bem dentro do caos, não me importa nem um pouco se as coisas estão fora de lugar, pelo contrário, percebo que assim funciono bem melhor do que quando vivia casado e tendo hora para fazer tudo, hora para almoçar, tomar banho, jantar, sair... cansei de obrigações, basta a que tenho com o jornal por força unicamente da minha necessidade de ter que pagar contas, algumas deixadas por minha ex-mulher que é uma gastadeira incurável, além do mais tem as duas meninas que dependem de mim para conquistarem um lugar nesta sociedade de merda, para onde eu cair na besteira de trazê-las. Sinto pena delas, mas sinto mais pena de mim, não tenho perdão por ter sido tão abestalhado ao ponto de me deixar levar pelos encantos físicos da mãe delas, que não descuidou um só instante em me cativar com as suas curvas generosas, lábios carnudos, belos seios e uma cabeleira negra capaz de agasalhar todas as minhas carências. Um monumento daqueles e um babaca como eu só podia dar nisso: duas filhas lindas mas completamente à mercê deste mundo que não vacila em apelar para os mais baixos instintos ou fazer dos meios fins, quando se trata de manter o atual paradigma de desenvolvimento.

Aceito e assumo este caos. Não me sobrou escolha. Agora mesmo estão espalhados pelo chão e sobre os móveis, cerca de dez periódicos – os quais sou obrigado a ler diariamente – e mais uma dúzia de revistas, dos mais variados gêneros e temáticas, sem contar a quase centena de livros que me são enviados pelas editoras, na tentativa de que eu venha a resenhá-los e recomendá-los de algum modo na minha coluna. E sempre faço o que me pedem. Não sei dizer não. Sou como aquela rapariga que diz sim para qualquer tarado por absoluta falta de confiança em si mesma. A cidade está inundada, suja, depredada, amorfa, mesquinha e tacanha - apesar da alavancagem que as classes C, D e E deram na indústria dos telefones celulares? Sim, lá vou eu redigir mais um texto. Mais uma falcatrua política, mais um escândalo nos degraus dos palácios, mais uma maracutaia engendrada para favorecer este ou aquele político? Sim, mais um texto de 140 linhas. Um iconoclasta para execrar, um subserviente e venal para exaltar? Opa, só se for agora: saindo mais uns trinta parágrafos em times new roman 12 padrão, espaço duplo. A turma tá fumando crack adoidado? Mais um texto. As jovens mães continuam enfiando agulhas de tricô no útero para abortarem suas crias indesejáveis, morreu mais um homossexual, mais um velho, mais um negro, mais uma puta, mais um mendigo, mais um filho sem pai abandonado numa das milhares de favelas imundas que cercam esta cidade, vítimas dos fundamentalismos cotidianos? Texto, texto, texto. Os caras estão fodendo o planeta, com seus carrões de luxo para saciar uma indústria absolutamente sem futuro, entupindo as ruas e detonando mais ainda o ar desta cidade que não pára simplesmente porque é uma completa desvairada que só pensa em consumir mais e mais porcarias produzidas aqui e lá fora só porque um dia lhe disseram que ela era a locomotiva do progresso, este progresso de bosta que só privilegia a ostentação e o vício em detrimento da vida? Sim, mais textos, mais dúzias de pesquisas pra ler, mais uma vintena de análises sobre as causas e os efeitos deste caos intocável e subsidiado pelo deus mercado, dúzias e dúzias de páginas, todas de acordo com a premissa progressista do politicamente correto - sim porque podemos descer a lenha mas temos que ser morais e éticos ao ponto de não criar descrédito ao jornal nem os princípios jurídicos da nação o que significa não gerar nenhuma onda de desconfiança e anarquia que acabaria por levar a humanidade de volta à barbárie e ao caos. Parecem incansáveis os preceitos, ouvidos e lidos diuturnamente: combata o pecado, nunca o pecador; mantenha a esperança; seja otimista, levante o seu astral, permita que o universo conspire a seu favor... estas titicas retiradas de manuais de auto ajuda que só engordam os seus produtores e que se alastram mais que erva daninha, nos aprisionando num provincialismo alienado, omisso e covarde.

Aqui diante da janela, olho para o meu próximo texto com o ceticismo a me provocar cacoetes e comichões: tenho que entregar amanhã duas laudas e meia sobre o processo de despoluição dos rios Tietê e Pinheiro. Caralho! Onde vou encontrar forças para fazer um texto construtivo? Foi o que meu editor pediu, quase que com lágrimas nos olhos. Há três dias que estou matutando sobre o assunto e não encontro termos além dos genéricos puta que os pariu, abutres de uma figa, súcia de traíras, comandita de canalhas... Estas palavras não me dão trégua e insistem em ficar pairando sobre o teclado e a tela do meu computador, como almas penadas a assombrarem minhas perspectivas.

Não existe mais lugar onde jogar as bitucas de cigarros, os cinzeiros estão cheios. De vez em quando as reaproveito, principalmente naqueles momentos em que não tenho saco para ir ao boteco da esquina comprar mais um maço. Mas vejam só: eu disse não. Consegui dizer não pelo menos uma vez na vida. Disse não à danada da cerveja e à vodca. Antes começava a beber por volta das dez horas da manhã e só parava quando caía em alguma sargeta. Cansei das crises de consciência devido ao que tinha aprontado durante o porre, cansei das amnésias alcoólica e à sensação de estar possuído por algum espírito imundo. Tomei vergonha na cara e hoje só bebo fanta laranja e, de vez em quando, um suco de limão, que é para não abaixar ainda mais minha combalida resistência.

Hoje foi mais um dia daqueles. Choveu pra cacete, todas as emissoras de televisão veicularam à exaustão que não devemos culpar ninguém por isto, que a culpa é da Natureza, nunca em toda a história choveu tanto assim. Os âncoras e as celebridades imploram aos subúrbios para que parem de jogar lixo nos míseros córregos que ainda insistem em atrapalhar a nossa vida... acho que o melhor mesmo seria pavimentar tudo, tacar asfalto e concreto sobre todos eles e criar a cidade dos sonhos.

Não estou ainda terminal nesse negócio de pânico mas tenho evitado sair à rua. O zelador sempre quando me trás a correspondência aproveita para dizer que preciso fazer exercícios, que estou com uma puta barriga e já pode ver sinais de varizes nas minhas pernas... Que se dane! Daqui não saio, daqui ninguém me tira. Só morto, eu espero. Peraí, estão tocando a campainha...”

Três dias depois do ocorrido, fiquei sabendo que o nosso amigo havia sido preso e condenado pelo crime, inafiançável, de fumar em lugares fechados. A síndica do prédio havia feito a denúncia junto ao Comitê Paraoficial dos Fiscais pela Preservação da Saúde dos Não Fumantes que, com base na lei, prestamente, o encarcerou, o interrogou e, num ineditismo, como que para tornar exemplar o caso, do dia para a noite, preparou-se o processo, ouviu-se as testemunhas, que juraram em uníssono, terem sido ameaçadas em seus bem estares pelo comportamento insidioso e malévolo do réu. Feita a juntada aos autos de vários depoimentos fidedignos de especialistas, ilibados cidadãos comprometidos com a moral e os bons costumes, o processo foi levado à júri quase que no mesmo dia e no começo da noitinha anunciou-se a sentença: haveria de pagar uma multa de um milhão e quinhentos mil reais, fazer doação mensal de duzentas cestas básicas para lares de caridade, além da pena de quinze anos de reclusão em regime fechado, sem direito a condicional, sem direito à apelação, numa penitenciária no interior do Estado das Alagoas.

Nós, da redação, sentiremos sua falta. Boa sorte, Adroaldo.

Em tempo: por determinação da Diretoria deste aguerrido jornal, ouvidos todos os canais competentes, o espaço antes ocupado pelo nosso infeliz repórter, doravante apresentará, já a partir da próxima semana, os sábios conselhos da nossa mui querida amiga e patrona, Sra. Dra. Maria Guilhermina Cavalcante Loureiro Silva e Silva, exímia bióloga, botânica e diácona primaz da Nova Igreja Católica Reformada Apostólica Evangélica Positivista Sincrética do Brasil, premiada e publicada várias vezes, nacional e internacionalmente. A sua coluna ministrará à comunidade local profícuos ensinamentos sobre o plantio e cultivo de bromélias, visando a exposição em feiras municipais, estaduais e federais, trabalho ao qual se dedica a mais de cinquenta anos na Fundação Preservacionista Radical da Flora e Fauna dos Jardins de Antanho, onde exerce o humilde cargo de presidenta vitalícia.

Obrigado!


Um comentário:

  1. Paulo,
    você por acaso entrou na minha mente? Estou perplexo...e emocionado. Brilhante...

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