terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Lavi

Foi assim, de repente. De repente tudo estava no chão. Pedra sobre pedra, um monte a perder de vista de destroços. A terra tremeu e as casas gemeram e desabaram ante a fúria do terremoto. Dessaline estava voltando do trabalho quando sentiu, sob os pés, fervilharem as pedrinhas do caminho de terra que o levava, todos as tardes, ao encontro da família. Ficou estático, ali, no meio da rua, e só conseguiu cair de joelhos quando a última casa desabou. Não teve medo durante, teve medo agora, quando tudo havia cessado, teve medo por suas duas filhas e pela mulher. E cambaleou até o que antes havia sido sua morada.
Um corte profundo no braço o despertara do torpor. Rasgara uma parte da perna da calça e fizera um torniquete à altura do cotovelo esquerdo. A ferida não mais sangrava, uma camada de poeira se acumulara sobre o ferimento quase como um curativo improvisado porém os dedos estavam ficando roxos, devia afrouxar um pouco o nó antes que... ahn, quem falou? Um gemido agudo, próximo, o fez interromper o próprio cuidado. Ali perto, perto de onde já havia estado antes cavoucando com as mãos calosas os entulhos em busca de algum sinal de vida. Seriam elas? Lalin! Estimé! Matant! Onde, Bondyé, onde?
Com dificuldade, seguiu, através dos restos do que antes havia sido uma modesta residência de artesão oleiro, fabricande de tijolos, utensílios domésticos e alguns artefatos de decoração, atividade que ultimamente mal dava para compensar o que tivera que gastar, quatro anos atrás, com o envio do seu único filho para a Universidade. Ayiti! Quantas esperanças foram depositadas nele! E para quê? Seis meses após a matrícula fora cooptado pela oposição radical e entrara para a guerrilha sob pretexto de libertar o país do jugo totalitário, da ignorância e da miséria. Que estrago, Bondyé! Que estrago os antigos governantes, descontentes com a perda de poder, vinham fazendo com o seu pobre país. Só não se comparava àquele porque perpetrado por mãos humanas. Para este não, pois que vindo do Alto, não existia comparação. Era a ira de Deus desabando sobre as cabeças dos viventes, cabeças duras e perseverantes no pecado, pensou Dessaline não como um desafio ou uma revolta contra o Todo Poderoso mas uma constatação de que algo de verdade precisaria ser feito para interromper aquela sucessão de erros que tinham levado sua ilha a mais completa miserabilidade.
De corpo e alma, enquando divagava, ia, desordenadamente, afastando restos de parede, caibros partidos, ferros retorcidos, fios expostos, uma porta de geladeira, um sapato velho, um resto de uma surrada boneca de pano, alguns cacos de telhas, uma roda de bicicleta, uma porta de guarda roupa e um pedaço do vestido de Lalin... Lalin?! Lalin, gritou, sentindo que colado ao tecido um torso pequenino revelava-se. Lalin, respira, menina! Lalin estava inteira mas, machucada, muito machucada. Será que viva? Ajuda, por favor! Gen yon moun la? Não havia ninguém para ajudá-lo. Todos estavam ocupados na busca de um seu. Lalin, acorda, Lalin! Vem, menina, volta pra mim. Mas Lalin não podia responder. Estava dormindo. Um sono pesado. Um sono longo, para nunca mais acordar.
Agora que se resignara da perda, de mais esta perda, olhava para o nada, sem qualquer emoção. Não havia mais esperança. Elas tinham ido. Ele tinha ido. Dessaline estava sozinho. E não via caminho, não via nem dia nem noite, apenas um vazio sem fim. Foi trazido de volta à vida oprimido pelos gritos de alguns vizinhos que pareciam protestar contra algo ou alguma coisa ou alguém. Tentou afundar a cabeça entre os joelhos, tapou os ouvidos mas continuou ouvindo aquelas imprecações, muitos xingamentos, palavrões... “fora bandido, carniceiro, maldito”! Pensou ser mais um dos ataques que vinham sendo conduzidos por aqueles que, uma vez libertos dos muros da prisão, voltaram para atormentar, como demônios, o bairro. E pediu, com uma certa alegria, que uma bala o varasse naquele instante. Seria uma benção, pensou.
Porém, ao invés da dor aguardada, o que sentiu, sobre o ombro, foi o toque de uma mão. Um toque leve, carinhoso, tímido. Quem era, Bondyé? Quem parecia estancar a sua dor? Quem o ajudava a levantar-se e buscava o seu abraço? Kimoun sa ye?
Cercado pelos vizinhos que continuavam sua arenga, alguns ameaçando de morte o seu anjo de toque tão suave, Dessaline via a luz. E no centro da luz, o rosto do seu único filho que, desarmado, voltara para ajudá-lo na reconstrução da vida.


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