domingo, 10 de janeiro de 2010

Homero e Eu

Era um animal comum. Nem pedigree tinha. Porém era fiel, atencioso, alegre, brincalhão, vigilante, obediente, disponível, protetor... tudo o que se espera de um cão. Viera para os seus donos ainda filhote e aprendera rapidamente onde comer, onde beber, onde dormir, onde fazer seu xixi, onde fazer cocô.
De inicio tentava insinuar-se a todo instante e causara alguns incidentes. Com suas exigentes brincadeiras, demonstrações de carinhos e ou simples curiosidade chegara a quebrar uma peça valiossíma, arranhar alguns móveis caríssimos, sujar uma e outra parede branquíssima, no que foi várias vezes repreendido pelos donos com uma mansidão cativante. Esta atitude fez com que logo percebesse que o melhor mesmo era sempre aguardar o clique, que devia ser oportuno e, principalmente, controlar a torrente de impulsos que insistiam em dominá-lo. Não foi difícil o aprendizado e, para a alegria de todos, crescera robusto, saudável e indispensável.
Houve uma ocasião em que mostrou considerável bravura. Durante uma breve ausência dos donos, dois estranhos tentaram invadir a casa no que foram prontamente rechaçados por sua diligente auto-confiança. Fizeram-lhe muitas cócegas na barriga por isto. Ele gostou muito. Tinha um lar, uma família, comida, bebida, um bom colchão para dormir... a vida era bela. Que mais poderia querer?
Dava-se bem com os outros animais da casa. Fizera um certo esforço, é verdade, para chegar àquela convivência pacifica. Por ser maior e mais forte, achava-se no direito da posse exclusiva do território. À custa de algumas cicatrizes, depressa percebeu que cada um estava ali “defendendo” a sua própria sobrevivência. Não tardou para começar a distribuir olhares fraternos para um ou outro “inimigo natural”. Afinal aquela comunidade animal tinha parte na responsabilidade de manter o bem-estar e a felicidade da comunidade dos donos. Em retribuição ao zelo diuturnamente demonstrado? Foi mais longe. Compreendeu que ali, todos dependiam de todos - para o bem estar e felicidade do território.
Pelos donos aprendera a desenvolver um carinho todo especial. Passou a compreender todos os seus estados de ânimo, todos os seus desejos e motivações. Condoía-se sobremaneira não poder fazer muito mais além de latir e abanar o rabo. Mas era suficiente. Que mais poderia fazer um cão? Conseguia afastar as nuvens cinzas de preocupações que, volta e meia, teimavam em pairar sobre aquelas cabeças de olhos vívidos, pousadas em pescoços eretos, sustentados por ombros donde pendiam braços que mantinham mãos e dedos fartos de afagos e surpresas. O fato de os donos, sua prole, parente, aderentes e agregados conseguirem manter-se sobre duas pernas era, para ele, um verdadeiro assombro. Tentara várias vezes caminhar naquela posição mas desistira por, infelizmente, revelar-se bastante incômoda. E de suas bocas saíam não latidos, mas sons inebriantes, sons que aprendera a distinguir e a relacionar. Sons que aprendera a venerar com toda sua alma de animal.
Numa noite, todos da casa estavam reunidos na sala. Era uma noite especial, um dos filhotes dos donos atingira uma altura considerável e exibia já uma leve camada de pelos a cobrir-lhe quase por completo o rosto. Congratulavam-se mutuamente, satisfeitos com aquela ocasião. Não cessavam de comentar que o filhote agora atingira uma etapa de destaque e que logo logo iria para um lugar distante, dedicar-se a afazeres que, certamente, lhe traria muitas glórias e muita, muita alegria e felicidade para aquela família.
A mesa estava arrumada. Bolos, tortas, pães, empanados, doces, pudins, assados, molhos, cestas com frutas, foram trazidos e expostos. Várias garrafas de vinhos, jarras de sucos e água completavam aquele espetáculo de odores, cores e sabores. Todos os animais foram instados a permanecerem em seus nichos à espera de alguma solicitação ou oferta de alguma iguaria. Todos obedeceram. A exceção do nosso protagonista que relutante, conseguira esquivar-se e ir prostrar-se na poltrona para, com olhos inquietos acompanhar toda a cena. Súbito, alguém suspendeu uma taça e propôs um brinde. Ansioso, o cão grunhiu baixinho. Ninguém prestou-lhe atenção. Grunhiu um pouco mais alto e insistiu. A dona o interrogou com o olhar. Sentiu que só tinha uma alternativa. E arriscou. Em meio a algazarra de vozes, choques de objetos, trinados, silvos, pios, miados, balidos, coaxos, chilreios, gorjeios, grasnos, grassitos... levou um certo tempo até que conseguiu articular por completo sua intenção, enfim, tendo dominado, a princípio, o próprio espanto, soltou num só jorro aquilo que seria descrito como sendo o ápice da sua curta existência:
- Eu também desejo ao Luquinha toda a felicidade do mundo!
Fez-se um silêncio constrangedor, mortal. Naquele momento, revogada a lei da gravidade, penso, até os anjos suspenderam a sua guarda. E qual baque, o alvoroço foi total. Uns disseram que aquilo era obra do demo e trataram de armar-se de qualquer objeto pontudo ou cortante, outros que haviam presenciado um milagre e juntaram as mãos em prece, dois ou três, lambuzados de caldas, quedaram-se petrificados em seus assentos; alguns filhotes esconderam-se debaixo da mesa empurrados pelos pais enquanto outros cercaram-no, aos pulos, ávidos que lhes revelasse o truque e ou contasse um história; alguém disse que iria chamar a carrocinha, o corpo de bombeiros e até a polícia federal; a bisavó resmungou que aquilo era uma impertinência; a tia vesga estridulou haver chegado o fim do mundo e rasgou as vestes; e, enquanto o dono pedia insistentemente calma e ponderação um parente distante, especialista em cálculos e finanças e com amigos influentes na política e no showbis, asseverou que aquilo era uma dádiva, um verdadeiro negócio da china, que reparassem: tinham ali, diante dos seus olhos, uma verdadeira mina de ouro, uma fonte inestimável de riqueza, era só deixar por sua conta, em troca de uma pequena comissão claro, que logo logo estariam todos nadando em rios de dinheiro, era tudo uma questão de pragmatismo, que deixassem de lado certos escrúpulos e aproveitassem a oportunidade.
O que sei sobre os acontecimentos anteriores e posteriores a este evento termina aqui. Homero prefere não comentar, insiste em manter silêncio e tocar a sua vida. Respeito, afinal temos nos dado muito bem e não me agrada contrariar a quem tem sido um verdadeiro pai para mim. Sim, senhores, ele me adotou, eu que perambulava pelas esquinas em busca de mim mesmo, acabei encontrando um amigo. Sei agora tudo que preciso saber para ter uma vida relativamente confortável, sem preocupações com sobrevivência, segurança, relacionamentos, prestígio e ou poder. Hoje, embora faça uso muito raramente da palavra, dedica-se a escrever suas experiências e a me passar um ou outro conhecimento. Tem usado o meu nome para publicar os seus livros e é enfático: para todos os efeitos, ele é apenas o meu animalzinho de estimação. Eu gosto.
Se somos celibatários? Não. Homero tem lá suas aventuras mas é muito previdente, prefere lances rápidos, costuma me dizer que a paixão é fugaz e a imperfeição animal. Eu, recentemente, encontrei alguém, que ao contrário dos chatos, priva-me da solidão fazendo-me valiosa companhia.


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