quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

A Herança

Recebera do advogado a documentaçao completa. Saira do edificio sentindo-se com se, finalmente, a lei da gravidade houvesse sido revogada. Dificil acreditar. Olhou para as chaves, lá estavam elas, reais.
Passos bebados conduziram-no pelas quadras, enquanto visualizava vizinhos, facilidades, incovenientes... quase lá... 96... 98... 2000.
Putz! O estado geral da casa nao era de todo ruim. O pior, pode verificar, encontrava-se do outro lado da grade, na varanda, diante da porta, plantado sobre o traseiro, focinho inquieto, pelo eriçado, orelhas em riste, enormes presas cintilantes... O primeiro pensamento foi: Rex?, articulou desajeitadamente e quase nao teve tempo de pronunciar a ultima letra. O animal disparou, sedento de sangue e, a uns tres metros do portao, deu um salto. Ascanio, com o coraçao num batuque surdo, sentiu os membros afrouxarem, fugir-lhe o espirito... e aquelas patolas buscando atingi-lo atraves dos ferros que rangiam enfraquecidos. O cao fixou-se impedido, alvoroçado com aquela visita inoportuna. "A senha... preciso de uma senha... nao, de um telefone... onde tem um telefone por aqui"?
- Alo, doutor Gouveia, olha... o senhor nao disse... sim, mas... que faço?... é, eu sei... bem... é... o problema é meu... obrigado por nada! Chamar a carrocinha? Que tal a SPA? Nao, ele nao esta abandonado... pertence à casa... e a casa me pertence, logo...
- Bom dia. Por favor, um quilo de coxao mole. O cutelo partiu uma costela. - Perdao, sou novo por aqui, acabei de adquirir... ou melhor, herdei uma, ahn, um lote no fim da rua, ahn ahn, e descobri que tenho uma companhia nada amistosa.
- E esta pensando em ganhar a confiança dele?
- Preciso!
- Quer um conselho?
- Por favor.
- Mate-o! Outra costela partida. - Nao, isto seria desumano. O cutelo tinha se aproximado a uma distancia muito perigosa do nariz de Ascanio.
- Nao se atreva a soltá-lo.
- Nao, nao senhor, de jeito nenhum... veja bem, ahn... estou tentando tomar pé da situaçao... ver quais alternativas... nao desejo prejudicar ninguem.
- Entao, o que vai ser? O punho armado caiu sobre o balcao. - Bem, digamos... a alcatra esta fresca? O olho exibiu uma veia exaltada. - Um quilo entao. E, por favor, corte em pequenos pedaços, pode ser?
- Se vamos ser vizinhos é bom que fique sabendo logo de cara: sou um cidadao tentando ganhar a vida o mais honestamente possivel; nao gosto de estranhos; nao gosto de muita conversa e nem que duvidem de mim. Portanto, aqui esta o seu pedido, passe bem e obrigado pela preferencia.
Os tempos atuais nao permitem digressao. Rapidez e eficiencia sao as palavras da hora. Por isto vamos tratar de encurtar a convesa e acompanhemos o jovem Ascanio fazer o caminho de volta e matar (desculpem!) nossa curiosidade com o desfecho desta historia.
Assim que botou o pé na calcada foi recebido pela fera: Arf, au... arf, au... arf, au, au... Instintivamente desembrulhou a carne, cavocou com os dedos, selecionou uma porçao e vum... atirou. Para nossa decepçao o naco caiu no meio de um monte de trastes e lá ficou, oculto, entre tábuas, latas e garrafas imprestáveis. O cao girou a cabeça, parou de latir e comecou a arfar, provavelmente decepcionado com tamanha impericia. - Desculpe! E preparou-se para arremaçar mais um .
Um garoto surgiu ao sul empunhando uma vareta na mao direita. Avido e sacana, recostou-se na grade e, de esguelha fotografou a cena. Irrompendo aos gritos, talatando nos ferros, atraiu para si a atençao da fera. Com que destemor, com que intimidade, com que desenvoltura os dois chegaram ao entendimento! Finalmente o menino bateu com menos forca a vareta no ultimo vao da cerca tres vezes. O cao deitou-se e veio grunhindo ate o alcance da sua mao.
- E ai, parceiro? Disse, acariciando-lhe a nuca. - Já comeu hoje? Aquele moço ali parece que tem alguma coisa pra voce. O cachorro olhou para Ascanio. Vai lá, vai! O cao levantou-se, voltou para a varanda e prostou-se na posiçao de gárgula. - Deixe a carne do lado de dentro do portao, sugeriu o menino. - Depois e só esperar. Tchau! E lá foi saltitando um assobio orgulhoso. Ascanio fez o que o garoto ordenou e deu dois passos atrás. O animal cheirou o ar e, em meia lua, lentamente, caminhou até a comida . Ergueu os olhos lacrimosos e latiu. Desta vez uma oitava abaixo.
Ascanio pensou que tudo na vida possui um valor agredado e teria que ir muito além da prosaica decisao a respeito de qual cor deveria pintar a casa se quisesse, de fato, pertencer a um universo.

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