sábado, 12 de outubro de 2024

Homens da minha vida

 

Escrita, Zhang Ziaogang, 2005


Minha primeira paixão? Pateta (o amigo do Mickey). Em seguida encontrei Cavaleiro Negro, Zorro, Jerry Lewis, Elvis Presley… Cinema e quadrinhos, quadrinhos e cinema… amor à primeira olhada num tempo de descoberta da palavra escrita e da projeção anímica.

Um dia li um livro do Monteiro Lobato (não lembro o título), e uma passagem me chamou atenção: um aparelho nos fazia viajar à pré história da humanidade. Explodiu minha cabeça… Mal sabia que, adiante, conheceria a televisão: profético!

Nos anos 60, época do ginásio, tive um professor de português que me mostrou o porquê participar de protestos e passeatas… entendi o afeto que nutri por ele quando mais tarde encontrei Robin Williams na Sociedade dos Poetas Mortos.

Clint Eastwood tornou-se o durão mais amável quando me apresentou Os Imperdoáveis. Também me cativaram, pelo charmoso modelo de masculinidade, Marcello Mastroianni, Marlon Brando, Al Pacino, Robert De Niro… Todos melhores amigos de qualquer adolescente que deseja ser amado por todas as mulheres do mundo.

Não me peçam explicações, mas nunca gostei do Superman, Batman ou qualquer outro super-herói. É que sempre acreditei mais no possível que no improvável. Talvez por isto, a figura religiosa de Deus nunca tenha sido objeto das minhas preocupações, embora tenha, na infância, servido à Igreja na posição de coroinha (logo repugnado pela aspereza da barba do sacristão e os charutos fedorentos do senhor bispo), mas descobri que os autoproclamados representantes da divindade, jamais correspondem àquilo que colocam na boca do seu deus, mas como são os únicos que falam Dele, acaba que o Todo Poderoso termina com a moral mais suja que pau de galinheiro.

Mas amei muitos semideuses, principalmente quando me foram apresentados pelo carinho do professor Junito Brandão em suas histórias assombrosamente vibrantes de seres inaugurais e mitológicos.

O professor Joseph Campbell me desvendou As Máscaras de Deus e com ele percebi a mecânica que movimenta esta criação ardilosamente humana.

Isaac Asimov me fez entender, com A Última Pergunta, que amar é sobretudo conhecer.

Borges e suas Ficções foi amor da primeira linha à última linha; As Cidades Invisíveis fizeram tanto carinho na minha alma que ainda hoje penso em sair de porta em porta a perguntar podem dedicar um instante para ouvir a palavra do Ítalo Calvino.

Reservo um cantinho secreto do meu ser para o Pessoa, quase um heterônimo de mim mesmo.

Graciliano Ramos foi outro que, com suas Vidas Secas, São Bernardo, Histórias de Alexandre e A Terra dos Meninos Pelados, não me deixou alternativa senão amá-lo.

Em meio a tantos implacáveis fuderosos fodásticos narradores da fantástica vida real – Shakespeare, Amado, Garcia Marques… é em Machado de Assis que me encontro, certo de estar, na companhia de alguém que sente e conhece a verdadeira, bela e contraditória experiência humana. 



sábado, 5 de outubro de 2024

Anônimos Parachoques III

 

Google Imagens



Quando um não quer, dois não brigam. Mas um apanha”.


Quando estiver se sentindo sozinho, abandonado, achando que ninguém liga para você… atrase um pagamento”.


Os psiquiatras dizem que uma em cada quatro pessoas tem alguma deficiência mental. Fique de olho em três dos seus amigos. Se eles parecerem normais, o retardado é você”.


Em dia de tempestades e trovoadas, o local mais seguro é perto da sogra: não há raio que a parta”.


Sogra é que nem onça: temos que preservar, mas ninguém quer ter em casa”.


Se você não pode ajudar, atrapalhe. O importante é participar.


Quando li sobre os problemas que a bebida causa, deixei de ler”.


Eu bebo pra ficar ruim mesmo, porque se fosse pra ficar bom, eu tomava remédio”.


Bebo pra esquecer, só não me lembro do que”.


Solteiro é um sujeito que chega toda manhã ao trabalho vindo de uma direção diferente”.


Só existem dois tipos de mulheres: as que me amam e as que ainda não me conhecem”.



sábado, 28 de setembro de 2024

A história

 

History, Edvard Munch, 1915


Ouvi de Rigot. Fim de tarde plácida com promessa de noite fria. Cafezinho fumegante no sujinho do Largo do Paissandu (nem tchun para a hora). Era um estica conversa até que os afobados tivessem se enfurnado lá sabe-se onde e um lugarzinho pra sentar no coletivo pintasse pra nós a caminho de casa.

E disse mais. Que foi Chexa – alagoano falador, pleno de mumunhas e mungangas, lá pros idos dos 80, numa birosca à beira da Lagoa Mandaú – quem contou, sem fazer questão nenhuma de alardear autoria. Pelo contrário, deixou claro que ouvira tal fantasia diretamente da boca do mui admirado doutor Diógenes.

Bem podia ter sido produto do consumo de algo com alto poder alucinógeno, acrescentei quase queimando a língua. Assoprei. A gente sempre coloca algum tempero, uma pitadinha de não sei quê àquilo que, a troco de passar o tempo, acaba por chamar atenção por conta desta necessidade que temos de tornar uma boa história parte da nossa vida. Uma história bem contada nem precisa ser novata, basta que quem a conte consiga nos inundar de verossimilhança. A loucura mais improvável deve ter motivo e consequência o mais familiar possível. Senão como tirar proveito? No mais das vezes, a história pouco importa. Importa mesmo como é contada.

Minha observação não afetou em nada meu velho amigo, envolvido estava em afastar uma mosca que festejava migalhas no canto da sua boca. Mas a mosca era só um pretexto para justificar sua agonia ao falar de fogo fátuo, vento terral, lágrimas de fogo caindo do céu suave e lentamente numa noite memoravelmente tormentosa. Cada detalhe daquele conjunto me deixou desconjuntado.

Rigot não era do tipo de seguir uma lógica linear, da causa pra consequência… Ia aos pulos, de trás pra diante e quase sempre botando tudo de ponta cabeça. Eu tentava acompanhar mas, devido minhas limitações costumeiras, quase sempre perdia boa parte da sua narrativa. E como tinha me proposto a colocar no papel o que pudesse alcançar das suas digressões, andar com ele e tentar acompanhar suas aventuras narrativas era quase como mergulhar no mais profundo dos abismos, sem nenhuma garantia  de retorno. E lá me ia envolvido em embaraços, medos atávicos, assombrações e metáforas. 

Quem era esse tal de doutor Diógenes? Um mago, um bruxo, um curandeiro, um taumaturgo? Rigot disse, sossega, vamos andando que até o meio da Consolação... Vais compreender o ponto de chegada. Tinha investigado. E então? Continuou seu enviesado relato com visível esforço no sentido de tranquilizar-me: doutor Diógenes, disse Chexa, foi-me apresentado na praça do Mercado. Distribuía entre os mercadantes, toda segunda, quarta e sexta ouvidos, auscultações e receitas em troca de bacia de verduras, bandas de melancia, meia dúzia de ovos, meio litro de feijão, um capão… Não que precisasse, precisava não. Simplesmente aceitava e agradecia. Sabia que ninguém gosta de dever favor a ninguém e que a melhor recompensa é ver que os outros apreciam aquilo que temos para dar, de coração. Era assim, aquele catedrático ancião: não dispensava a passada na feira para falar com seus amigos e fazer novos. E como duma boa conversa ninguém escapa de abrir o peito, o doutor acabava cuidando também de almas, para desgosto da sua digníssima esposa, senhora de bons princípios mas ciosa de que nem tudo são flores neste vale de lágrimas e maledicências.

Um altruísta que sabia contar histórias. É só? O que quero saber é o porquê ele contava sempre o mesmo causo, disse-lhe tomado pela impaciência por não entender o fato de termos esquecido de pegar o ônibus e minhas panturrilhas estarem em petição de miséria ali por volta da Praça Roosevelt. Dava o que todos queriam, rangeu Rigot. E gostavam, ora! Tanto que repetiam sua história e ai daquele que tentasse mudar uma vírgula – caíam de pau no contador pelo atrevimento ou negligência: não foi daquele jeito que o doutor Diógenes contou, justiçavam. O que tem…? Tentei adiantar-me no que fui contido pela sentença: Desista de impedir-me à conclusão, agora que estamos perto do Belas Artes e cada um poderá seguir pro seu lado. Já no fim da vida, doutor Diógenes, preocupado 1) com aquela aceitação inconteste da sua única história contada e recontada em quantas idas à feira se fizesse por dever de ofício ou pura e simples alegria e, 2) com a multiplicidade de línguas contadoras nascidas como que por geração espontânea, sempre a divulgarem as mesmas frases, tornadas agora lugares comuns, clichês e cânones, decidiu mudar este estado de coisas. Dedicou seus últimos dias a contar individualmente a mesmíssima história só que para um, modificava uma frase, pra outro variação da paisagem, àqueloutro uma entonação, uma pausa… 

E assim, aos poucos, sua história, aquela história tornou-se múltiplas e a fazer com que cada ouvinte tomasse posse de algo inédito e repassasse até que restou difícil saber qual teria sido, de fato, a história original.