History, Edvard Munch, 1915
Ouvi
de Rigot. Fim de tarde plácida com promessa de noite fria. Cafezinho
fumegante no sujinho do Largo do Paissandu (nem tchun para a
hora). Era um estica conversa até que os afobados tivessem se
enfurnado lá sabe-se onde e um lugarzinho pra sentar no coletivo
pintasse pra nós a caminho de casa.
E
disse mais. Que foi Chexa – alagoano falador, pleno de
mumunhas e mungangas, lá pros idos dos 80, numa birosca à beira da
Lagoa Mandaú – quem contou, sem fazer questão nenhuma de alardear
autoria. Pelo contrário, deixou claro que ouvira tal fantasia
diretamente da boca do mui admirado doutor Diógenes.
Bem
podia ter sido produto do consumo de algo com alto poder alucinógeno,
acrescentei quase queimando a língua. Assoprei. A gente sempre
coloca algum tempero, uma pitadinha de não sei quê àquilo que, a
troco de passar o tempo, acaba por chamar atenção por conta desta
necessidade que temos de tornar uma boa história parte da nossa
vida. Uma história bem contada nem precisa ser novata, basta que
quem a conte consiga nos inundar de verossimilhança. A loucura mais
improvável deve ter motivo e consequência o mais familiar
possível. Senão como tirar proveito? No mais das vezes, a história
pouco importa. Importa mesmo como é contada.
Minha
observação não afetou em nada meu velho amigo, envolvido
estava em afastar uma mosca que festejava migalhas no canto da sua
boca. Mas a mosca era só um pretexto para justificar sua agonia ao
falar de fogo fátuo, vento terral, lágrimas de fogo caindo do
céu suave e lentamente numa noite memoravelmente tormentosa. Cada detalhe daquele conjunto me
deixou desconjuntado.
Rigot não
era do tipo de seguir uma lógica linear, da causa pra consequência…
Ia aos pulos, de trás pra diante e quase sempre botando tudo de
ponta cabeça. Eu tentava acompanhar mas, devido minhas limitações
costumeiras, quase sempre perdia boa parte da sua narrativa. E como
tinha me proposto a colocar no papel o que pudesse alcançar das suas
digressões, andar com ele e tentar acompanhar suas aventuras narrativas era
quase como mergulhar no mais profundo dos abismos, sem nenhuma
garantia de retorno. E lá me ia envolvido em embaraços, medos atávicos, assombrações e metáforas.
Quem era esse tal de doutor
Diógenes? Um mago, um bruxo, um curandeiro, um taumaturgo? Rigot disse, sossega, vamos andando que até o meio da
Consolação... Vais compreender o ponto de chegada. Tinha investigado.
E então? Continuou seu enviesado relato com visível esforço no
sentido de tranquilizar-me: doutor Diógenes, disse Chexa,
foi-me apresentado na praça do Mercado. Distribuía entre os mercadantes, toda segunda, quarta e sexta
ouvidos, auscultações e receitas em troca de bacia de verduras,
bandas de melancia, meia dúzia de ovos, meio litro de feijão, um
capão… Não que precisasse, precisava não. Simplesmente aceitava
e agradecia. Sabia que ninguém gosta de dever favor a ninguém e que
a melhor recompensa é ver que os outros apreciam aquilo que temos
para dar, de coração. Era assim, aquele catedrático ancião: não
dispensava a passada na feira para falar com seus amigos e fazer
novos. E como duma boa conversa ninguém escapa de abrir o peito, o
doutor acabava cuidando também de almas, para desgosto da sua
digníssima esposa, senhora de bons princípios mas ciosa de que nem
tudo são flores neste vale de lágrimas e maledicências.
Um altruísta que sabia contar histórias. É só? O que quero
saber é o porquê ele contava sempre o mesmo causo, disse-lhe tomado
pela impaciência por não entender o fato de termos esquecido de
pegar o ônibus e minhas panturrilhas estarem em petição de miséria
ali por volta da Praça Roosevelt. Dava o que todos queriam,
rangeu Rigot. E gostavam, ora! Tanto que repetiam sua
história e ai daquele que tentasse mudar uma vírgula –
caíam de pau no contador pelo atrevimento ou negligência: não foi
daquele jeito que o doutor Diógenes contou, justiçavam. O que tem…?
Tentei adiantar-me no que fui contido pela sentença: Desista de
impedir-me à conclusão, agora que estamos perto do Belas Artes e
cada um poderá seguir pro seu lado. Já no fim da vida, doutor
Diógenes, preocupado 1) com aquela aceitação inconteste da sua
única história contada e recontada em quantas idas à feira se
fizesse por dever de ofício ou pura e simples alegria e, 2) com a
multiplicidade de línguas contadoras nascidas como que por geração
espontânea, sempre a divulgarem as mesmas frases, tornadas agora
lugares comuns, clichês e cânones, decidiu mudar este estado de
coisas. Dedicou seus últimos dias a contar individualmente a
mesmíssima história só que para um, modificava uma frase, pra
outro variação da paisagem, àqueloutro uma entonação, uma pausa…
E assim, aos poucos, sua história, aquela história tornou-se
múltiplas e a fazer com que cada ouvinte tomasse posse de algo inédito
e repassasse até que restou difícil saber qual teria sido, de fato, a história
original.