sábado, 7 de outubro de 2023

pode ser?

 

Acima da Cidade, Marc Chagall, 1918



hoje, a cidade amanheceu calma:

maré baixa, piscinas cristalinas

peixinhos, pedras e ouriços…

não ouvi sirenes

a anunciarem desconfortos e desgraças


aproveitei pra sonhar

o que mais quero neste intervalo:

te amar diante da janela

ao som inexorável do martelete buf buf

no concreto da casa ao lado

a pontuar o tesão e as batidas

dos nossos doloridos corações


vem, amor

que não há quem nos proteja

de tamanho caos


morramos soterrados pelo engenho

dos fabrishomens barulhentos

e ressuscitemos no silêncio inventado,

momentâneo

de nossas almas saciadas

alheios à cidade,

ao desejo e aos aplausos


vem amor,

que este tantinho de generosidade

faz a desdita nos esquecer…


vem, que deslembro das queixas

dos remorsos, segredos, mimos, dengos

calundus, manhas e caprichos -

trejeitos que herdei do meu pai

(fraco, topado de orgulho)

sempre pronto a revidar… vem, amor

amanhã pode não ser


 

sábado, 30 de setembro de 2023

ah, o amor

 

Amor e Psiquê, Henryk Siemiradzki, 1894



ah, o amor

cantado, sonhado, adorado

por nós, comuns


(amor é redenção

cremos em sua religião)


foi uma vez, poeta

que o amor me conheceu

viciado ardeu e se queimou

gastou consumido

seus sentimentos

na busca da porção, última dose

e sumiu na chama breve

da sombra fria

que lhe aquece o mistério

de não aceitar objeção


ai amor,

choro pelos tolos

que passam os seus dias

a fazer amor, jamais amando


 

sábado, 23 de setembro de 2023

bonito é nascer

 

Sol Nascente, Anton Prinner, 1944



luzes na cidade

transição: meia-noite

dois mundos em fricção


mortiços olhos buscam

o horizonte desde cá

coroado de ausências


pular a janela

correr rua afora

incomodar o silêncio…


distante o grito

tudo é vazio

tudo é lugar…


daí o retorno

cicatriz adoçada

eterna no punho


começar de novo

livre é a dor

e a graça do poema


meia-noite:

cidade acesa

tão bonito nascer