sábado, 17 de setembro de 2022

Mural das Indiscrições X

 

Office in a Small Sity, Edward Hopper, 1953


Constatação: O tanto que sei é quase nada diante daquilo que não sei.

 

Estação Vida: Existem aqueles que se despedem e a gente chora antes mesmo da partida. E existem aqueles que insistem em permanecer mesmo quando a gente clama que partam.


Convite: Em vez de frases motivacionais ou mandamentos religiosos, pela manhã, que tal apenas um sincero bom dia!


Desproporção: Um professor está para 30 alunos, assim como 30 assessores estão para um deputado.


Perguntar não ofende: Deus acredita em Deus? Se sim, existe outro Deus; se não, Deus é ateu.


Impossibilidade: Alguém já viu ou soube de algum ateu possuído pelo capeta?


Entreouvidos: O mercado, ah, o mercado… O mercado é um cachorro latindo por um osso.


Quem avisa, amigo é: Tudo que pode ser imaginado existe. Portanto, muito cuidado com o que pensas.


Regra: De um modo geral, nossas cidades são todas democraticamente desagradáveis.


Licença Poética: Bandeira Nacional: Depois da apropriação indébita, nem pra pano de chão…


 

sábado, 10 de setembro de 2022

Na beira dos macacos

 


Um pescador, Tarsila do Amaral, 1925

A professora Marialva – galega apessoada e ferina nos olhos, aceitou trabalhar na Beira dos Macacos depois de descobrir que o lugar tinha o que mais desejava na vida: praia, brisa e sossego.

Alugou uma casinha e decidiu que ali, naquele povoado de gente fina, criaria seu filho, cuidaria de uma horta e, quem sabe, morreria, um dia, nos braços de um homem gentil.

Na sala de aula insistia em preparar trinta alunos para um mundo em construção, enquanto nos dias de folga se estirava na alvíssima prainha do Bororé a ouvir a alegria do seu menino, na prancha, a ensaiar manobras nas suaves ondas que rebentavam próximas aos seus pés.

Em todo idílio habita uma serpente. E Marialva enxergou um homem (??) se masturbando ao lado do coqueiro seco. Seus olhos longínquos doeram. Por que cada centímetro a descoberto do corpo de uma mulher é um chamado à pornografia? Humilhada, chamou o filho.

Foi falar com o cabo do destacamento, ali, na porta da bodega. Por três vezes fora alvo de lascívia, disse. Sentia-se vulnerável, reforçou. O militar falou que estava anotado e que ficasse tranquila, investigaria.

Em casa, toda noite ao botar o menino para dormir, encafifava: Ousaria o tarado aproximar-se, tocá-la? Começou a ter insônia.

Um dia decidiu que levaria suas preocupações até onde fosse possível. E foi à pracinha conversar. Falou com um, com dois… falou com tanta gente e não encontrou jeito de se sentir segura. A situação piorou quando viu o tal homem e o fardado, ridentes, partilharem uma meiota de cachaça.

Investigou por conta própria: o sujeito era capataz no sítio Belo Coco, casado, três filhos… Procurou a esposa. A pobre não acreditou e a expulsou aos berros - “Em nome de Jesus, meu marido é pessoa de bem. Como posso acreditar em ti, mulher sem homem?!”

- Procura o Biu, alguém disse baixinho e passou-lhe a visão. Marivalva decidiu que se os costumes estavam jogando contra ela usaria um coringa: buscou Nego Biu.

O chefe do tráfico disse que ficasse de boa que, por seus olhos verdes, por seu porte, seu trabalho, sua palavra, daria seu jeito e desapareceu sonhando com a professora casada com seu irmão pescador.

Na Beira dos Macacos nunca mais se viu jacaré brechando as mulheres nas praias. Ninguém morreu. O tarado foi mandado pros cafundós dos judas, com um selo na testa…

Na festa de Iemanjá, Marialva conheceu Deolindo e se apaixonou pelo perfumado jangadeiro. 



sábado, 3 de setembro de 2022

cotidiano

 

O Pássaro Pintado, Václav Marhoul, 2019



acordei passarinho

mortinho da silva

disse oi a um parente que, em sofrência, desbrilha – argh

um transeunte jogou escuridão no meu rosto - aff

o pessoal do vila botou a viola no saco e, eita

a vida me acertou…


morro, mas não morro em vão

sigo as partículas,

migalhas camufladas do fantasma atômico

que me criei

para atravessar paredes

no rastro da ilha

do outro lado

da sala


a dúvida é

eternizo, desapareço ou fico?


daí, acordo… passarinho

morto da silva