sábado, 25 de junho de 2022

infimidade

 

Templo dos Dez Mil Budas, Hong Kong


uma vez disse a um amigo

que não suportaria

um ente querido morrer antes de mim,

sofreria muito,

preferiria ir primeiro…

ele, espantado, me olhou nos olhos e respondeu:

que pensamento egoísta

pois desejo ser o último a partir

quero que, enquanto puder,

na última despedida dos meus

seja minha a mão a dizer adeus


demorei para compreender essa lógica

mas ponderei: - já pensou?

quando me apartar

em vez de solidão e vazio

ser saudado por todos

que, alegre, saudamos no partir


e este passou a ser o meu mantra

não me preocupar com a partida

afinal – eis o meu conforto

imaginar que há sempre alguém a nos saudar e honrar


não trato aqui de religião

não frequento culto

tampouco trabalho para erguer igrejas

apenas me presto a encontrar amigos

no sagrado templo eventual de um bar

onde, naturais, fazemos libações

cantamos a existência

e saudamos a viva alegria de ainda estarmos aqui

a testificar um instante

um tantinho de memória

uma nesga de lembrança

na santidade dos amados que partiram

sem jamais mencionarmos que morreram


por isto, digo: no dia em que me for

por favor, camaradas, façam alarde

se enfeitem, cantem, dancem,

comam, bebam, gargalhem

dêem vivas, gritem hurra

vossa alegria há de expurgar os meus defeitos

e fazer germinar virtudes

jamais sonhadas

pois eu, átomo,

invisível e silencioso

ao me juntar à vastidão do universo

serei mais ínfimo do que sou agora


 

sábado, 18 de junho de 2022

palavras ao ar

 

Avenida Paulista, Fer Caggiano, 2013




pego leve

amanhã virá isso e aquilo

hoje só aqui agora

e a perspectiva do terror

de ser convocado pelos mortos


vou te dizer, meu amigo

já foi pior

hoje continua


passeio pela avenida principal

a fingir que esta é a melhor cidade do mundo

mas ela, a avenida/cidade

é cheia de propósitos

(todos para amanhã)

e dez horas da noite de domingo é impossível

um proletário comer um sanduíche

no centro financeiro

desta preguiçosa e provinciana cidade


de barriga vazia pego um ônibus na volta pra casa

e se me lembro bem

esqueci que nada há na geladeira

portanto, dormirei faminto e

sonharei com um paraíso

melhor que perder de vez o apetite

no amanhã

(ah, de novo o danado futuro)

na boquinha

um pastel ou fatia de torta

na padaria do bairro

satisfeito por continuar leve

nem isso nem aquilo

hoje só aqui e agora…


minha segunda filha diz que sou herói

bem, até agora me valho

a sorrir

e sorrindo, arremesso ao ar

melhores que eu

tais palavras

um tanto amarelas


 

sábado, 11 de junho de 2022

Crônicas Pandêmicas 2

 

Eleven A.M., Edward Hopper, 1926



5. Em época de avanço da extrema-direita e do coronavírus, a série Hunters coloca uma pulga gigante atrás da nossa orelha. Somos levados ao centro da luta contra nazistas que foram cooptados pelo governo norte-americano, por ocasião do término da II Guerra Mundial e assumidos como “armas” na luta contra o comunismo. Essa multidão de assassinos acaba por assumir postos chaves na “terra dos livres e o lar dos bravos” e se dedica ao seu esporte predileto: preparar o advento do 4º Reich.

Um inocente xarope de milho, produzido por uma inocente empresa, fará todo o trabalho: matar metade da população dos EUA e tomar o poder na maior potência mundial. É aí que surge um grupo, formado por judeus, uma freira, um ninja japonês e uma negra que, à custa de muitos tropeços e feridas, consegue anular a meta da diabólica conspiração.

Porém, no último episódio nos invade uma incômoda sensação, que acaba por colocar a série na categoria terror. Assistimos os minutos finais, com a impressão de que, com certeza, não estamos a salvo, nem mesmo entre os nossos (ou, em meio àqueles que lutam ao nosso lado). A paranoia toma conta dos nossos corpos.

Daí é de bom alvitre ficar atento com a mão que nos alimenta e/ou nos cumprimenta, pois é possível esteja rolando um virusinho nas relações ditas afetivas, amistosas e cordiais. Mas, que não se perca a esperança: ainda existem avós e netos — os últimos confiáveis, segundo os roteiristas. Por isto, fiquem atentos à história da própria família e, sobretudo, coloquem-se em perspectiva na luta da civilização contra a barbárie, afinal é fatal ser pego com as calças nas mãos na hora que a jiripoca piar.

.x.

6. Somos nossas circunstâncias. E aí, meus povos e minhas povas!… lembram do lero-lero do Edu Lobo: “gosto mesmo de fulana mas sicrana é quem me quer”. Pois é, criticar o povo brasileiro é fácil, quero ver viver com salário-mínimo, sub ou desempregado, sem-terra, sem teto, miserável… e com a mídia te manipulando, a milícia te acossando, a polícia te matando, o agronegócio te lascando, os políticos te roubando… Somos tão massacrados que temos vergonha de mostrar a cara (como desejava o Cazuza). Mas, vai vendo, uma hora a gente pega a preá. Uma hora a gente sacode a poeira, dá a volta por cima e vamos jogar boliche com cabeças coroadas (conforme desejo de um velho amigo) e partir pro banquete. Por mim, bastaria aplicar a lei (e olha que temos carradas), simples assim. Enquanto isto, salve Bacurau, salve Petra, salve Mangueira e todos os tantos carnavais…

.x.

7. O Luiz Felipe Pondé, dublê de filósofo e mungangueiro profissional, bem que tentou vender a alma ao diabo, mas o capeta, curto e grosso, recusou. Eduardo Bolsonaro decretou que não se precisa ler livros para ser conservador (entenda-se extrema direita), mas simplesmente dar audiência ao Alerta Nacional do Sikêra Júnior — um verdadeiro mestre na arte de cancerizar geral e ainda sair com um troco.