Matched Marriage, Quentin Marsys, 1530
Dissemos
um ao outro: vamos viajar, sem volta! Era um tempo duro, suado, nada
de dinheiro fácil, havíamos de economizar. Ao contar tostões
alcançamos suficiente para comprar a passagem mais barata num
daquele ônibus pirata. Aí justifiquei: luxar pra quê, se desta
vida não se leva nada? Além disso, é uma aventura, sem pressa para
chegar a algum lugar, viagem de curtição, com paradas aqui e ali,
tempo de sobra para curtir a paisagem.
Ficara
bom nesse negócio de inventar desculpas para não fazer a coisa
certa. Mas o que sabia eu da coisa certa? Naquela longa época tinha
muito poucas ideias. Sobrava o que eu sentia e pronto…. apesar dos
protestos e das advertências (que não ouvia e se ouvia não
entendia).
Juntamos
as trouxas… só não juntamos as escovas porque aí seria nojento e
não estávamos a fim de ser chamados de hippie ou, pior,
comunistas… e fomos para o ponto, aguardar a embarque.
Não
invento: o local estava tomado de gente. E chegava mais e mais. Uma
horda do tipo retirantes e nós iguais. Porém, apenas eu e ela
havíamos combinado partir para aquele lugar algum.
Procurei-a
para confirmar, mas envolta pela multidão começara a se afastar
cada vez mais. E esta constatação jogou-me num abismo: sabia de
fato o significado da partida?… qual o ônibus?… qual a
companhia? Em meio a esse frenesi, percebi que havia começado a
perder a noção e a lembrar que esquecera de perguntar ao vendedor
se o ponto era aquele mesmo e o qual o horário de partida?
Minha
derrota foi presumir que ônibus, todos eles, passam pela mesma
estrada, a estrada na qual me encontrava. E se era assim, melhor
acalmar: o ônibus que me (nos) levaria apenas de ida a algum lugar,
a qualquer momento pararia bem ali, no ponto em que estava, envolto
por esta multidão que me desconfortava e aumentava a distância
entre eu e aquela… mas, onde estaria agora?
Presumi
além
da conta.
Minha
esperteza deu chabú.
Desesperado, procurei o número telefônico da empresa… queria
alcançar o setor de informações… mas, nada, nada
trazia
nos bolsos além de um contrato manuscrito em chinês tradicional em
quatro folhas de papel almaço. Traição!
Havia
sido traído. Mas calma:
fora
eu meu próprio traidor. Qual
o quê? Tentei
abrir espaço entre as gentes, buscando alívio. Queria falar com
ela, prometer em alto e bom som que iria ressarci-la mas
meu
esforço se mostrou
vão e paradoxal: cada vez que buscava me aproximar, mais ela se
afastava e mais eu me afastava do ponto em que deveria embarcar no
ônibus que nos (me) levaria a algum lugar e
a
multidão em volta não
dava a mínima para qualquer
movimento que eu viesse
a fazer,
abarrotado de tralhas em louca disparada,
através de ruas,
vielas, becos, solos e subsolos – em
busca de encontrar
o guichê onde havia comprado a passagem
mas
desembocara num mundo
onde
a
verdade
ia
ficando cada vez mais inacessível.
Impossibilitado
de alcançar, quis
gritar, xingar, maldizer… lágrimas
ansiosas de liberdade vieram
em meu socorro. Larguei
mão, abri
as comportas do desespero e do alívio. Busquei
refúgio no
primeiro
templo
que
encontrei pela frente.
O
sacerdote
não
se deu ao trabalho de responder minha indagação convulsiva sobre o
que estava acontecendo? Condescendente,
me ofereceu
um lenço branco que
acabei
por esquecê-lo
no bolso de uma velha calça nos
anos que se seguiram.
Reparem:
esta
é
uma estória de fraqueza. Não
lhes contei aquilo que
escapa por
não buscar os instrumentos que me permitissem entender o que
precisava entender.
Tudo que acabei
de narrar
foi uma pequena
tentativa de contextualizar um mero sonus
convulsus:
pesadelo,
que
tem me torrado a paciência cada vez que lembro dele.