sábado, 5 de maio de 2018

para viver uma ausência



Nostalgia, José Higuera, 2014




para viver uma ausência
é preciso ter presente
a infinita liberdade
de ficar parado no meio da casa
com os olhos inundados de silêncio

para viver uma ausência
é preciso aceitar que palavras e gestos
retornem ao útero das coisas virgens e imaculadas
enquanto no estalo da matéria
uma nova sinfonia é engendrada

para viver uma ausência
é estar preparado para aquela lembrança
passível de arrependimento
e evitar consumir-se pelo remorso
causado por nossas imperfeições

para viver uma ausência
é descobrir em todas as palavras
uma única palavra
e transformá-la num lema
e dessa alquimia permitir que nasça uma oração

para viver uma ausência
é sonhar juntar o disperso
agregar o desgarrado
abraçar o mundo
e chorar no ombro do vazio



sábado, 28 de abril de 2018

pequeno manual da desconfiança


The Abyss of Uncertainty, Carlos Fernández Chicote, 2013




não dá pra confiar
em quem nunca se apaixonou pela tia
ou pelo professor
ou por aquele amigo
que se sonhava parecer
e não tinha medo de imitar
porque era bacana ser benquisto

não dá pra confiar
em quem nunca desabou de porre
numa praça abandonada
e acordou de manhã
caminhando no sentido contrário
descalço
em meio ao tráfego
botando fé de que encontraria
na próxima esquina
o amor da sua vida

não dá pra confiar
em quem detesta dobradinha
ou só come do biscoito o recheio
ou que nunca viajou de carona
ou que nunca tenha percorrido
os labirintos do memória
apenas para dar uma espiadinha no vazio
e encontrar
pródiga de lacunas e ausências
a irredutibilidade do agora

não dá pra confiar
em quem não se importa com isso
e ainda futuca os erros
como se os defeitos
as falhas
as imperfeições fossem a essência
e não circunstância
derivada da incerteza
que orienta e guia 
a nossa frágil existência

não dá pra confiar
em quem não está nem aí pra história
ou considere a ficção uma lorota
e assim busque uma desculpa
para transitar na língua à vau
e acabe por esquecer de cometer poemas
ou de chorar um rio
diante dos desencantos de amor

porque, meu velho,
se desaforo não se leva pra casa
não dá pra confiar
naquele que nunca pisou na grama
ou se colocou em defesa da flor
e da liberdade de voltar pra casa
com a alma perfumada
a distribuir abraços
em meio a uma tempestade de impropérios



sábado, 21 de abril de 2018

bom dia


Esmerald Dawn, Eyvind Earle, sem data



de quantos pássaros
ruídos
brisas
e promessas
uma manhã
se engendra?


hoje, ao coçar-me
recordei joão cabral
a tecer um poema
entretido com galos
que intercambiam
urdida trama
uma sinfonia
quase jogo
cocoricos
a inflar
no afiado
e afinado ar
uma tenda
um toldo…


sentidos despertos
olhos espreitam
o juízo
no sistema
esse sistema
que nos entrelaça
ao balão luminoso
que se ergue
anunciado
todo santo e bom dia