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Euclides
da Cunha, ao falar sobre Canudos, escreveu que o nordestino é, antes
de tudo, um forte. Outro dia Betinha, minha prima, me mandou um texto
onde o autor dizia que, nós nordestinos, enfrentamos o medo com
destemor. As duas definições são verdadeiras mas força e a
coragem nada seriam sem astúcia, concluo eu.
A
história que vou contar, ouvi da minha mãe. Anos depois a encontrei
num livro de fábulas italianas do Ítalo Calvino. Aqui, para
deleite, apresento minha versão.
“Valente,
tinha perdido pai e mãe. Sem eira nem beira, decidiu sair pelo mundo
em busca de fortuna. Ao parar numa pousada, o dono avisou que não
havia vaga mas, se ele fosse corajoso podia dormir no casarão
abandonado que ficava no alto de um morro que dominava o lugarejo e
que lhe daria um candeeiro, uma garrafa de jurubeba e um pedaço de
carne seca, afinal aquele casarão era mal-assombrado e ninguém saía
de lá vivo. O desafio foi aceito na hora.
Quando
deu meia-noite, ao comer um naco de carne, Valente ouviu, saindo da
cumeeira, uma voz: – Posso jogar? Tomou um gole de jurubeba
e disse que se jogasse logo e uma perna caiu no assoalho. Outro gole
e a voz tornou: - Posso jogar? Jogue, ora. E outra perna caiu
no assoalho.
Continuou
a comer e beber tranquilamente enquanto a voz pedia se podia jogar.
Irritado, Valente, disse que se jogasse de uma vez porque precisava
dormir. Caiu um braço, depois outro e, por fim, uma cabeça. Quanto
todos as partes se juntaram apareceu um homem cuja altura batia no
teto.
Valente
ergueu o copo e disse: - Saúde! O homão olhou bem pra ele,
examinou-o de cima a baixo e ordenou: - Pegue o candeeiro e venha
comigo.
Valente
pegou o candeeiro mas não se mexeu. O gigante disse: - Passe na
frente. Que ele passasse primeiro, respondeu Valente. Então o
sujeito se adiantou e de sala em sala atravessou o casarão. Debaixo
de uma escadaria havia uma portinhola. - Abra. Abra você,
respondeu Valente.
E
o homem abriu com um empurrão. Havia uma escada em caracol. - Desça.
Primeiro você, disse Valente. Desceram a um subterrâneo e o
homem indicou uma laje no chão. - Levante. Levante
você, disse Valente. O camarada a ergueu como se fosse uma pedrinha.
Embaixo havia três tigelas cheias de moedas de ouro. - Leva para
cima. Leve para cima você, disse Valente. E o
homem levou uma de cada vez para cima.
Novamente
no salão principal a aparição falou: - Quebrou-se o encanto.
Uma perna jogou-se pro alto. - Destas três tigelas uma é sua.
Um braço subiu. - Outra é para o dono da pousada
que virá buscá-lo pensando que você está morto. Outro braço
se depreendeu e sumiu na cumeeira. - A terceira é para o primeiro
pobre que passar. A outra perna subiu. - O casarão
é teu, disse a cabeça sozinha no chão, porque toda
a linhagem dos donos se perdeu para sempre. E
a cabeça levitou e sumiu por entre as telhas.
Assim
que o céu clareou o comerciante veio com o caixão para recolher o
morto. Mas encontrou Valente sentado na janela e logo lhe entregou a
segunda tigela. Morou feliz no casarão por muitos e muitos anos.
Até
que um dia aconteceu ver uma sombra. Levou um susto tão grande que
bateu as botas, sem ter entregue a tigela destinada ao
primeiro pobre que por ali passasse”.