sábado, 8 de março de 2025

hoje

 

O que torna as casas de hoje tão diferentes, Richard Hamilton, 1992



hoje, ah hoje…

nem bem acordo o celular dispara

a promoção do dia, o desastre

a falcatrua, a mentira

o imbróglio político, o escândalo

o joguinho que interrompi ontem…

frequência cardíaca a mil,

glicose no teto, bolsa cai…

funerária boa viagem fez uma ligação perdida, ah!

antes que’u esquente ovos pro desjejum

a ia me avisa da teleconsulta

para implorar cardio que

avalie o risco cirúrgico

de uma inevitável remoção de catarata…

em meio a tal burocracia me assalta um pensamento:

pobre burro num corre insano

através de florestas em chamas, terremotos

tartarugas engasgadas com canudinhos de plástico

tô nem aí e améns

a fugir de tigres e tubarões famintos mas

ainda vivo e a ver o burro, zurro e açoito:

no dia derradeiro finda o poema,

a não ser que alguém decida repetir

ou dar continuidade ao verso


 

sábado, 1 de março de 2025

o colonialista

 

Colonização da América, Carlos Latuff, 2008


ontem entrei na vossa terra

fugido de outros fortes

que minhas ideias perseguiam…


e, agora, perseguido por vocês

galopo furtivo nesta terra

que ainda não é minha mas

pela graça da divina promessa

me foi destinado este chão

o chão que ocupais, para nele edificar

um reino digno da excelsa glória


porque me perseguem então, ímpios -

não ouviram o chamado que o deus fez a mim?


dele trago o dever de aniquilar todos vocês

mas por minha sapiência e benevolência

poupo os frágeis – mulheres, velhos e crianças,

os confino em terras fracas para que não prosperem

e não alimentem a vingança dos ancestrais


mas, vocês ainda me perseguem

não mais bravos guerreiros

mas fantasmas, assombrações

miríades de choros, lamentos, gritos

agonia que ecoa a calada dor

à custa das armas, doenças, drogas e dinheiro


 

sábado, 22 de fevereiro de 2025

era uma vez

 

Odalisque, Guillarme Seignac, 1900


a muito tempo atrás

(quando os pulmões do mundo

respiravam o ar estreito da juventude

e os meus colegas de colégio pareciam

teimosos pássaros a sobrevoarem um tempo

cheios de asas de alegria, entusiasmo -

tirando o pior que rugia lá fora -

esperanças, bonitezas e perspectivas)

eu acordava, corria pro banho,

sob luz fria da madrugada,

escovar os dentes, tomar banho

e voltar correndo

pra escolher a roupa cansada de todo dia,

tomar café com leite, pão e manteiga

crente no ônibus pontual

que me levaria para 9 horas de trabalho

de segunda a sexta-feira…

(às vezes aos sábados ou domingos

meu chefe nos convocava pro balanço

e lá íamos engaiolados, na kombi da firma,

contabilizar os detalhes e sobras

da velha fábrica de percaline…)


ó tempo que não passava!

pois nada sabia, apenas intuía

o anormal que me acostumara

às ordens imperiosas da mãe-pátria,

a quem eu devia amar ou deixar,

(obedecer era tudo!)

e lá ia com fome, com sono

esperar o carnaval chegar,

cumprir a regra geral…

e até casei, de papel passado,

com o lar doce lar

e fui dormir no cabaré

à procura daquele amor

que tatuou cicatrizes em minh’alma

e apertou minha mão no velho cinema

diante das imagens do príncipe valente…

mas quem era eu pra sustentar

aquela mulher da vida, zélia linda,

última flor do lácio,

a me arrastar à poesia,

a rebobinar memórias,

último refúgio que alimenta,

tal qual numa fita de Fellini,

o seio túrgido da paixão