sábado, 18 de janeiro de 2025

fogo impuro

Skull on Fire, Kristoffer Zetterstrand, 2010



um homem

(ator famoso)

chora copiosa e artisticamente

para deleite da audiência

de uma grande emissora televisiva:


sua casa, no condomínio Paliçadas do Pacífico,

foi destruída pelo fogo

implacável que consome

o lado rico da cidade dos anjos…


a repórter, com voz embargada,

lhe é solidária na ladainha purgatória

onde nega as mudanças climáticas…


e alheio às chamas

que lhe enxovalha as lágrimas,

brada ao exército israelense,

(em nome da redenção e grandeza

da terra dos livres e lar dos bravos)

que dê um fim, sem perdão,

aos palestinos na faixa de Gaza


 

sábado, 11 de janeiro de 2025

Uma história, três narrativas

Velho Triste no Portão da Eternidade, Vicent Van Gogh, 1890


1.

E naquela noite, o velho senhor deitou-se mais cedo.

E logo acercou-se uma voz íntima que chorava.

O velho quis interrogá-la, saber sua história mas, a voz não dizia, não falava… Só chorava.

O velho sentiu que deveria descobrir o que aquele choro escondia.

Acostumado, andou e andou… Atravessou oceanos, escalou montanhas, desceu através de vales e, para seu espanto, jamais saiu de diante da sua própria cama… E só então pode perceber que era de seus lábios que nascia aquela voz que chorava.


2.

Decidido a dormir, o velho senhor, naquela noite tapou os ouvidos e conseguiu alcançar um sono profundo.

E naquela condição sem sonho ouviu a voz, ouviu o choro que vinha do fundo de si mesmo.

E sem que fizesse qualquer movimento viu uma criança que nascia.

Aparou-a com suas mãos, aconchegou-a em seus braços e percebeu que ambos gemiam e souberam ali, sem que ninguém lhes dissessem, que a dor é a condição de existir. A dor é o próprio existir. E, seus olhos de criança despertaram num alegre acalanto.


3.

E o velho habitou a voz

E a voz habitava o mundo

E o velho era o mundo

E o mundo era dor

E o mundo era velho

E viu que além da dor

Além do medo

Além da noite

Havia-lhe nascido

Um poema…

O velho enfim sorriu

Qual nunca chorara antes.


 

sábado, 4 de janeiro de 2025

palhaço

 

Circo, Candido Portinari, 1942




o dia bebe

e escreve


poemas

a embriaguez

inventa


lúcido,

viver é insano

e pode

acabar amanhã


mas e daí

se disfarço

e faço de conta

que o desatino

é um gesto teatral