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sábado, 3 de setembro de 2022

cotidiano

 

O Pássaro Pintado, Václav Marhoul, 2019



acordei passarinho

mortinho da silva

disse oi a um parente que, em sofrência, desbrilha – argh

um transeunte jogou escuridão no meu rosto - aff

o pessoal do vila botou a viola no saco e, eita

a vida me acertou…


morro, mas não morro em vão

sigo as partículas,

migalhas camufladas do fantasma atômico

que me criei

para atravessar paredes

no rastro da ilha

do outro lado

da sala


a dúvida é

eternizo, desapareço ou fico?


daí, acordo… passarinho

morto da silva


 

sábado, 6 de agosto de 2022

quatro quadras

 

Il poeta, Francesco Didioni, 1862



na hora da minha morte

os ponteiros dos relógios

desistirão de perseguir a rotina

e ficarei a mercê do nada

            ...

na minha inocência de criança

pai é aquele que afugenta

o monstro debaixo da cama

enquanto a mãe constrói o futuro

            ...

o animal humano

amontoado de carências

inseguranças e incertezas

costuma morder

                        ...

amor,

não me acorde amanhã

não quero sentir saudade

do que vivemos hoje


 

sábado, 25 de junho de 2022

infimidade

 

Templo dos Dez Mil Budas, Hong Kong


uma vez disse a um amigo

que não suportaria

um ente querido morrer antes de mim,

sofreria muito,

preferiria ir primeiro…

ele, espantado, me olhou nos olhos e respondeu:

que pensamento egoísta

pois desejo ser o último a partir

quero que, enquanto puder,

na última despedida dos meus

seja minha a mão a dizer adeus


demorei para compreender essa lógica

mas ponderei: - já pensou?

quando me apartar

em vez de solidão e vazio

ser saudado por todos

que, alegre, saudamos no partir


e este passou a ser o meu mantra

não me preocupar com a partida

afinal – eis o meu conforto

imaginar que há sempre alguém a nos saudar e honrar


não trato aqui de religião

não frequento culto

tampouco trabalho para erguer igrejas

apenas me presto a encontrar amigos

no sagrado templo eventual de um bar

onde, naturais, fazemos libações

cantamos a existência

e saudamos a viva alegria de ainda estarmos aqui

a testificar um instante

um tantinho de memória

uma nesga de lembrança

na santidade dos amados que partiram

sem jamais mencionarmos que morreram


por isto, digo: no dia em que me for

por favor, camaradas, façam alarde

se enfeitem, cantem, dancem,

comam, bebam, gargalhem

dêem vivas, gritem hurra

vossa alegria há de expurgar os meus defeitos

e fazer germinar virtudes

jamais sonhadas

pois eu, átomo,

invisível e silencioso

ao me juntar à vastidão do universo

serei mais ínfimo do que sou agora


 

sábado, 30 de abril de 2022

pétalas e plumas

 

The Spring, Walter Crane, 1883




Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas”

Ezra Pound, E Assim em Nínive





sou poeta,

bebo vinho,

saúdo a vida

e clamo a ti, fulana:

quando eu morrer

espalhe pétalas e plumas sobre a terra

para aqueles que ainda caminham

pisem suave

sobre o efêmero lar


 

sábado, 26 de março de 2022

A guerra que nos vive

 

War, Marc Chagall, 1915



Partiria. Atenderia ao chamado, decidiu.

Que o esperasse, com uma torta de frango sobre a mesa, pediu e jurou, diante dos olhos tristes da mulher, que retornaria assim que o conflito terminasse.

A ela (enquanto ajudava na arrumação da mochila) ocorreu que o caos não duraria para sempre…

Até riu, e contentou-se, tudo passa, fixou!


Mas o esperado demorou…

E o tempo, implacável, se sucedeu em opressiva inutilidade.

Então, as mãos cansaram, os seios murcharam… os dentes caíram até


Numa desavisada manhã, sem que nenhum estrídulo de sirene arranhasse o ar, a própria esperança se extinguiu e o relógio cessou a vigília.


O que era vivo faleceu e o que tinha perecido insistia em viver.


Enfardado de cicatrizes e remorsos, o maltrapilho homem cruzou o vão da porta morta.

Automática, a vista perscrutou a sala fúnebre e ao sentar-se à mesa defunta sentiu que o abandono era sua única companhia.

E ali, habituado ao vazio conquistado, compreendeu que morrera no instante em que partira.


Lá fora, a guerra zurrava. 



        

sábado, 14 de março de 2020

Instante XLI


Instant Relief Therapy, Michael Sowa, sem data





de quantos imãs
idas e vindas
é feita a vida?
      - o tal romance

mergulho...
      viver e morrer
      no inconcluso instante

é preciso folego
      para se encontrar no mundo