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sábado, 3 de maio de 2025

pensamentos de última hora

 

Não deve ser reproduzido, René Magritte, 1937


imaginar deus é a nossa fortuna eterna,

mas dar-lhe existência

torna miserável a nossa.


só existe sentido na incompletude

na carência, na ausência

na saudade do mundo…


sou tudo aquilo que me falta

ainda mais

aquilo que jamais alcançarei…


transitório,

quanto mais me encontro

mais me perco…

 

me escondo no reflexo

da minha própria natureza


 

sábado, 26 de abril de 2025

Dimensões

 

Old Man in Sorrow, Vicent van Gogh, 1890


Naquela noite, o velho senhor deitou-se mais cedo. Logo acercou-se uma voz íntima que chorava.

O velho quis interrogá-la, saber sua história mas, a voz não dizia, não falava… Só chorava. “O que esconde este choro”, pensou.

E antes que entrasse no sono, sem que arredasse o corpo de cima da própria cama, andou e andou, atravessou oceanos, escalou montanhas, desceu através de vales e só então percebeu que era de seus lábios que nascia a voz que chorava. Fora, o vento ensaiava seu uivo – mas era o choro interior que o preocupava.

Decidido a dormir, o velho senhor, naquela noite conseguiu alcançar sono profundo, mas sem sonho ouviu a voz, ouviu o choro que vinha de si mesmo.

Rajadas de vento açoitavam a janela nervosa, obrigando-o a abrir os olhos e, sem mover um músculo, viu uma criança – pequena, frágil, envolta em lágrimas e luz – emergir da escuridão tempestuosa. Suas mãos calejadas, com candura, a apanharam tal qual a um pássaro ferido. Aconchegados um ao outro, gemeram e perceberam a dor de existir. A dor é o próprio existir. Porém seus olhos de criança não mais choravam mas despertaram no quarto um singelo acalanto acompanhado pelo vento que zunia.

E o velho habitou a voz

E a voz habitava o mundo

E o velho era o mundo

E o mundo era dor

E o mundo era velho

E o velho viu

Que além da dor

do medo

da noite

da janela que estremecia

Entre o gemido e o vento

Havia-lhe nascido

Um poema de silêncio e asas

O velho enfim sorriu

e dormiu tal qual

quem nunca chorara antes.



sábado, 19 de abril de 2025

saga de um gozo

 

Caritas Romana, George Pencz, 1538



Noemi

mesmo sem tempo,

(tinha que chegar na hora no trabalho)

todo dia, esbaforida

dava uma geral na casa

pensando numa possível noitada

com aquele colega de departamento

aquele tal do peitoral sexy

e promessa gostosa

de um prazer para além de todo sexo…

mas o que ela não pensava

é que não adianta

deixar a casa um brinco

se o mundo continua lixo


Noemi

de quantos e tais detalhes

cansada, acenava ao coletivo

e lá ia, encoxada, bolinada,

indiferente a tudo (menos ao nojo

e ao colega de departamento

a lhe atazanar os sentidos…)


no dia que encontrou coragem

o convidou para um café

mas ele a empurrou contra o portão

suspirou “ahhhh…”, a sufocar seu silêncio

num gozo alheio e

com a calça encharcada de gala,

se mandou pela rua afora

sem nem ao menos perguntar:

foi bom pra ti?”


Noemi

ao devolver um dos seios para dentro da blusa

ergueu os olhos para o céu estrelado

ao tempo em que sentiu os pés

sobre o indiferente asfalto,

sussurrou para o vazio,

como se estivesse diante de um espelho estilhaçado:

quem, diabos, inventou o sexo?


 

sábado, 11 de janeiro de 2025

Uma história, três narrativas

Velho Triste no Portão da Eternidade, Vicent Van Gogh, 1890


1.

E naquela noite, o velho senhor deitou-se mais cedo.

E logo acercou-se uma voz íntima que chorava.

O velho quis interrogá-la, saber sua história mas, a voz não dizia, não falava… Só chorava.

O velho sentiu que deveria descobrir o que aquele choro escondia.

Acostumado, andou e andou… Atravessou oceanos, escalou montanhas, desceu através de vales e, para seu espanto, jamais saiu de diante da sua própria cama… E só então pode perceber que era de seus lábios que nascia aquela voz que chorava.


2.

Decidido a dormir, o velho senhor, naquela noite tapou os ouvidos e conseguiu alcançar um sono profundo.

E naquela condição sem sonho ouviu a voz, ouviu o choro que vinha do fundo de si mesmo.

E sem que fizesse qualquer movimento viu uma criança que nascia.

Aparou-a com suas mãos, aconchegou-a em seus braços e percebeu que ambos gemiam e souberam ali, sem que ninguém lhes dissessem, que a dor é a condição de existir. A dor é o próprio existir. E, seus olhos de criança despertaram num alegre acalanto.


3.

E o velho habitou a voz

E a voz habitava o mundo

E o velho era o mundo

E o mundo era dor

E o mundo era velho

E viu que além da dor

Além do medo

Além da noite

Havia-lhe nascido

Um poema…

O velho enfim sorriu

Qual nunca chorara antes.


 

sábado, 14 de março de 2020

Instante XLI


Instant Relief Therapy, Michael Sowa, sem data





de quantos imãs
idas e vindas
é feita a vida?
      - o tal romance

mergulho...
      viver e morrer
      no inconcluso instante

é preciso folego
      para se encontrar no mundo