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sábado, 24 de abril de 2021

humanidade humana

 

The Arte of Human Being, Laurel Burch, 1967




meus amigos

não vos percais em filigranas

tudo é acessório

quando a morte ronda e solapa

o que temos de mais precioso: uns aos outros;


quando a discórdia e a intriga

nos coloca armados diante de iguais;


quando a volúpia e a ânsia nos distancia

de coisas simples que nem um abraço

e nos enreda em detalhes

frívolos e insignificantes

tal qual um ocasional corte de cabelo


meus amigos, não permitais

que nossas provisórias diferenças

superem nossa frágil semelhança...


pois eis que o ódio

(com o qual às vezes alimentamos nossa alma)

lembrai

é sempre fruto do dissídio 

jamais daquilo que nos iguala



sábado, 27 de março de 2021

difícil humanidade

 

Hand of Fate, Achraf Baznani, séc.XX


não sei do amanhã

quem sabe?… aliás,

tenho medo do dia seguinte.

daí a ideia de escrever

notas urgentes

(súplicas de presença)

antes que a ausência me retire

para sempre

de perto dos meus amigos

e me jogue longe dos meus irmãos…


ah, palavras, preciso mostrar quem sou

além de toda manhã


quanto mais vivo, a cada instante,

o mecanismo de apagamento

não me quer nem morto

quer saber se desejo deletar ou não

a história, minha história...

por isto aplaino a lembrança

afio a memória

teço histórias impossíveis

e acordo todo dia

pronto para trabalhar

minha difícil e dolorida humanidade



sábado, 28 de novembro de 2020

tradição de ser humano

 

Birth of the Earth, Nina Tokhtaman Valetova, 2018


tive vários pais:

indígena, português, italiano

africano, árabe, escandinavo, japonês…

- mainha

        dada e curiosa

amou todos eles


quando nasci

        ela porém

decidiu inventar um nome novo para mim

- um nome que não me colocou nas pegadas de nenhum


mainha me lançou noutra estrada

onde poderia me tornar meu próprio pai


desde então tenho deixado de ser branco

preto, amarelo, vermelho

galego, sarará, ruivo e etecetera…

passei a habitar um certo intervalo

de diferente tradição - 

ali, onde posso ser simplesmente humano



sábado, 3 de outubro de 2020

a perfeita imperfeição

 

Allegory of Earth, Cornelis de Vos, 1630


verdade: o mundo foi feito sob medida para nós

        (todavia existem outras formas de vida

        dispostas e aptas à existência)

mas somos barulhentos

infantis

irresponsáveis

atolados em desejos

caprichosos

e quando em desesperada alegria

abraçamos árvores

lhes humanizamos, suplicantes:

- nos acolham e protejam!

mas, como,

se a nós desacolhemos

        se a nós desprotegemos?


e tudo vira literatura

(nosso mundo verdadeiro e ideal é uma ficção

um romance fashion – oh, triste meridianos tropicais)

e quando nos sentimos perdidos em escolhas

dizemos que o mundo

(perfeito para nós)

simplesmente nos desentende

e viajamos

liberados

em direção à perfeita imperfeição


o que fizemos

para sermos tão caídos?

com certeza

nada daquilo que o reverendo

nos censura

é que nosso defeito de fábrica

para muito além de mera falha técnica

foi propositalmente combinado:

- já pensou se fossemos o top

da multiplicidade?


ontem sonhei que me perseguiam

algo terrível me perseguia

(havia jantado feijão gordo

e um mosquito não me deu trégua...)

mas acordei sem medo

       em plena madrugada

desamanhecido, cercado de dificuldades

mas uma coisa me ajudou a encarar o dia

       lembrei que amo

       encontro, vinho e mar e, 

               além disto,

       estimo o meu próprio desastre