acaso me virem
numa foto, vídeo
leiam ou ouçam
algo do que fui ou fiz
não vos enganeis,
vós que jamais conhecerei -
estivestes presentes
em cada um dos meus instantes
acaso me virem
numa foto, vídeo
leiam ou ouçam
algo do que fui ou fiz
não vos enganeis,
vós que jamais conhecerei -
estivestes presentes
em cada um dos meus instantes
meus amigos
não vos percais em filigranas
tudo é acessório
quando a morte ronda e solapa
o que temos de mais precioso: uns aos outros;
quando a discórdia e a intriga
nos coloca armados diante de iguais;
quando a volúpia e a ânsia nos distancia
de coisas simples que nem um abraço
e nos enreda em detalhes
frívolos e insignificantes
tal qual um ocasional corte de cabelo
meus amigos, não permitais
que nossas provisórias diferenças
superem nossa frágil semelhança...
pois eis que o ódio
(com o qual às vezes alimentamos nossa alma)
lembrai
é sempre fruto do dissídio
jamais daquilo que nos iguala
não sei do amanhã
quem sabe?… aliás,
tenho medo do dia seguinte.
daí a ideia de escrever
notas urgentes
(súplicas de presença)
antes que a ausência me retire
para sempre
de perto dos meus amigos
e me jogue longe dos meus irmãos…
ah, palavras, preciso mostrar quem sou
além de toda manhã
quanto mais vivo, a cada instante,
o mecanismo de apagamento
não me quer nem morto
quer saber se desejo deletar ou não
a história, minha história...
por isto aplaino a lembrança
afio a memória
teço histórias impossíveis
e acordo todo dia
pronto para trabalhar
minha difícil e dolorida humanidade
tive vários pais:
indígena, português, italiano
africano, árabe, escandinavo, japonês…
- mainha
dada e curiosa
amou todos eles
quando nasci
ela porém
decidiu inventar um nome novo para mim
- um nome que não me colocou nas pegadas de nenhum
mainha me lançou noutra estrada
onde poderia me tornar meu próprio pai
desde então tenho deixado de ser branco
preto, amarelo, vermelho
galego, sarará, ruivo e etecetera…
passei a habitar um certo intervalo
de diferente tradição -
ali, onde posso ser simplesmente humano
verdade: o mundo foi feito sob medida para nós
(todavia existem outras formas de vida
dispostas e aptas à existência)
mas somos barulhentos
infantis
irresponsáveis
atolados em desejos
caprichosos
e quando em desesperada alegria
abraçamos árvores
lhes humanizamos, suplicantes:
- nos acolham e protejam!
mas, como,
se a nós desacolhemos
se a nós desprotegemos?
e aí tudo vira literatura
(nosso mundo verdadeiro e ideal é uma ficção
um romance fashion – oh, triste meridianos tropicais)
e quando nos sentimos perdidos em escolhas
dizemos que o mundo
(perfeito para nós)
simplesmente nos desentende
e viajamos
liberados
em direção à perfeita imperfeição
o que fizemos
para sermos tão caídos?
com certeza
nada daquilo que o reverendo
nos censura…
é que nosso defeito de fábrica
para muito além de mera falha técnica
foi propositalmente combinado:
- já pensou se fossemos o top
da multiplicidade?
ontem sonhei que me perseguiam
algo terrível me perseguia
(havia jantado feijão gordo
e um mosquito não me deu trégua...)
mas acordei sem medo
em plena madrugada
desamanhecido, cercado de dificuldades
mas uma coisa me ajudou a encarar o dia
lembrei que amo
encontro, vinho e mar e,
além disto,
estimo o meu próprio desastre