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sábado, 11 de janeiro de 2025

Uma história, três narrativas

Velho Triste no Portão da Eternidade, Vicent Van Gogh, 1890


1.

E naquela noite, o velho senhor deitou-se mais cedo.

E logo acercou-se uma voz íntima que chorava.

O velho quis interrogá-la, saber sua história mas, a voz não dizia, não falava… Só chorava.

O velho sentiu que deveria descobrir o que aquele choro escondia.

Acostumado, andou e andou… Atravessou oceanos, escalou montanhas, desceu através de vales e, para seu espanto, jamais saiu de diante da sua própria cama… E só então pode perceber que era de seus lábios que nascia aquela voz que chorava.


2.

Decidido a dormir, o velho senhor, naquela noite tapou os ouvidos e conseguiu alcançar um sono profundo.

E naquela condição sem sonho ouviu a voz, ouviu o choro que vinha do fundo de si mesmo.

E sem que fizesse qualquer movimento viu uma criança que nascia.

Aparou-a com suas mãos, aconchegou-a em seus braços e percebeu que ambos gemiam e souberam ali, sem que ninguém lhes dissessem, que a dor é a condição de existir. A dor é o próprio existir. E, seus olhos de criança despertaram num alegre acalanto.


3.

E o velho habitou a voz

E a voz habitava o mundo

E o velho era o mundo

E o mundo era dor

E o mundo era velho

E viu que além da dor

Além do medo

Além da noite

Havia-lhe nascido

Um poema…

O velho enfim sorriu

Qual nunca chorara antes.


 

sábado, 23 de novembro de 2024

Uma fábula anônima, digna do Borges

 

Imagem IA, Night Café


Assim que morreu, Juan encontrou-se num belíssimo lugar, rodeado pelo conforto e beleza que sonhara. Um sujeito vestido de branco aproximou-se:

Você tem direito ao que quiser, qualquer alimento, prazer, diversão…

Encantado, Juan fez tudo que havia sonhado fazer durante a vida. Depois de muitos anos de prazeres, procurou o sujeito de branco:

Já experimentei o que tinha vontade. Preciso agora de um trabalho, para me sentir útil.

Sinto muito, disse o sujeito de branco, mas esta é a única coisa que não posso conseguir. Aqui não há trabalho.

Que terrível, disse Juan, passar a eternidade morrendo de tédio. Preferia mil vezes estar no inferno.

O homem de branco aproximou-se e disse em voz baixa:

E onde o senhor pensa que está?


 

sábado, 21 de setembro de 2024

ensaio de amor

 

Até a próxima, Remédios Varo, 1958


o amor é que nem felicidade

ocorre por instantes…

 

me desespere o dia inteiro, baby

a veneta ondula em mim


se amar é sentir saudade

(nem pense em programar o fado)

haverá hora que diremos um ao outro

grato, pelo amor, meu amor

pelas nossas minúsculas eternidades...

 

e na despedida

riremos de toda imprudência impaciente


se amar é ser inédito

original

a canção marinheira

essa ressaca

é súbita festa vinda



sábado, 29 de agosto de 2020

brevidade

Dance of Eternal Love, Toshi Yoshida, 1970



o poema

dispensa a lógica

desaprecia negociar lisonjas

quem disse que o poema deva ser cornucópia

de falácias, sofismas, trapaças, barriga, burlas…

ou vire ruína

pela necessidade, vaidade, medo, ânsia

urgência, fome, sede, conservação

preservação, manutenção…?


que olhe apenas a natureza

o poema

sem qualquer conluio a priori

ou impostura

de métrica

de rima… para que a medida no poema?


o poema acontece

espontâneo...

o verso é que nem festa

        surpresa

estrofe fortuita

        ocasional afeto

simples beijo...

poema é bônus

           todo o resto é engenho

gasto

a se amar por instante

na brevidade

        dessa infinita

                eternidade