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Em
uma Ilhéus envelhecida no tempo a sofrer já de certo banzo, um
burburinho corria solto na Avenida Itabuna. A fachada discreta de um
bangalô, pintado de verde-oliva, escondia o que a “seu ninguém”
se revelava. Pertencia a Madame Nanã, cuja voz mansa e firme
comandava um segredo que poucos conheciam.
Quem
tomava conta da casa era a irmã, baixinha de riso fácil e gaitada
sincera. No quintal, uma fonte de água salgada decorada com uma
escultura de sereia. Os dois filhos de Nanã, que estudavam em
Itabuna e vinham passar férias com a tia, entre uma traquinagem e
outra – por exemplo, me jogar dentro de um caixote cheio de carvão
para que perdesse um pouco da minha alvura e alcançasse a morenidade
que nem eles, me contaram que Iemanjá vinha ali sentar-se para
pentear os cabelos. Numa noite em que tive a felicidade de dormir
por lá, um tanto assustado com os espelhos que adornavam as laterais
de uma penteadeira que ficava aos pés da cama e multiplicavam o meu
rosto de menino, fiquei deitado segurando o sono. Quando o relógio
da sala bateu meia noite, corri até a fechadura da porta que levava
ao quintal para comprovar a história que tanto me fascinava.
Adormeci frustrado: Iemanjá não apareceu. Repeti o gesto mais umas
duas outras vezes mas, para minha decepção, não pude constatar a
veracidade da história. Mas o que posso afirmar é que, adiante da
fonte, havia uma fileira de quartinhos, onde perfumadas pelos
incensos de jasmim, neófitas, futuras iaôs, “faziam a cabeça”.
Jamais
diria que Madame Nanã usava essa meninas para satisfazer os
caprichos dos coronéis da região mas o que todos sabiam era que ela
comandava, na década de 50, um cabaré no centro da cidade, pertinho
da Catedral de São Jorge.
A
morena Nanã havia chegado em Ilhéus fugindo da miséria do sertão
sergipano, trazendo consigo a força de seus orixás. Ao contrário
do que muitos pensavam, o dinheiro do negócio do cabaré não era
para luxo pessoal, mas sim para sustentar a tradição e manter os
roncós no quintal mágico do bangalô na Avenida Itabuna que servia
como metáfora da própria vida da cidade: de um lado, a fachada de
uma moralidade rígida, católica; do outro, o segredo da noite, a
vida de candomblé, a riqueza das crenças de matriz africana que bem
alimentam a alma da dengosa Bahia.
A
história de Nanã, seu cabaré e a casa na Avenida Itabuna
permanecem como uma lenda na memória de Ilhéus. Não há registros
oficiais, apenas o sussurro de uma vaga e longínqua lembrança.
Muitos acreditam que a estória dela e da casa que abrigava futuras
mães de santo seja apenas folclore, um conto popular construído por
gente comum que a quiseram rivalizar com a Maria Machadão e seu
Bataclan, imortalizados por Jorge Amado em Gabriela, Cravo e
Canela.
No
final, Nanã parece morar apenas em mim. Parece que só eu sei que
ela foi real. A visitei certa feita. Já quase cega, encontrei-a
sentada na varanda do bangalô - agora tomado pelo mato, distiorado,
cuja pintura parecia em pânico diante da decadência. Não entrei
nem pedi pra visitar a fonte. Havia levado vaso com flores e uma
caixa de chocolates. Demorei pouco. Ela não conseguiu lembrar quem
eu era. Tirei uma foto ao seu lado mas, infelizmente, não sei onde
foi parar este registro.
E
assim, desta lembrança de Ilhéus tudo parece que foi engolido pelas
areias movediças do tempo e onde existiu um dia uma profusão de
sentidos, signos e significados - lá donde o visível e invisível,
o sagrado e o profano, o poético e o prosaico andavam de mãos
dadas, restaram apenas ruínas e o perfume irreconhecível dos frutos
da terra.