Limpando a prataria, Armando Vianna, 1923
Não
me
perguntem quem
fez a denúncia. Talvez alguém da casa, parente, vizinho
– alguém
com
a
consciência dolorida.
Talvez
alguém
ferido em seus interesses ou sentimentos e, por isso mesmo, tenha
aflorado, em
si, desejos
de vingança. Bem, pouco importa.
O
fato é que
agentes
do Ministério do Trabalho, devidamente acompanhados por policiais
militares, num
certo dia, tocaram
a campainha da casa de número 1500
de uma das alamedas mais limpa, bonita
e
cheirosa do condomínio
Mirante dos Pavões e
esfregaram na cara dos donos (uma
dupla de profissionais liberais com raízes fincadas em velhos e
decadentes cafezais) um
mandado de libertação da doméstica Osmarina Dias dos Santos,
mantida em situação de trabalho escravo por
quarenta
e oito anos.
“Cheguei
aqui com 13 anos… lavava, passava, cozinhava, arrumava a casa e
cuidava das crianças… cuidei dos pais, dos filhos, dos netos e
agora cuidava de um bisneto… três gerações foram alimentados
com o leite dos meus peitos e até hoje o suor do meu rosto e o
cansaço das minhas pernas e braços sustentaram esta família das 5
da manha até às 10, 11 horas da noite… quando os patrões iam
pras festas eu não dormia, tinha que ficar acordada até eles
chegarem e aí emendava… tinha que preparar o café da manhã, o
lanche pras crianças levarem à escola, o almoço e nessa pisada
ficava acordada mais de um dia… não saía, não passeava, não
tive filhos, nunca mais soube dos meus parentes, cheguei até
esquecer o meu nome porque aqui todos só me chamam de “preta”…
acabei me acostumando sob a promessa de que um dia me levarem para
conhecer a Disney… jamais pensei que poderia viver a minha própria
vida”.
Ali
mesmo na sala de estar, largamente decorada com motivos coloniais,
dois agentes calcularam os valores devidos à vítima. O total da
indenização, mais multas e juros, permitiria que ela vivesse, com
folga, o restante dos seus dias onde quer que fosse. Outros dois não
tiveram qualquer dúvida ao enquadrarem a família no artigo 149 do
Código Penal e solicitarem o arresto dos bens do casal para cobrir
todos os encargos devidos.
Os
olhares do casal fuzilaram Osmarina com granadas de concussão e
imaginaram rupturas de tímpanos e hemorragia cerebral seguidos do
espalhamento dos membros e órgãos pelas ruas da cidade sendo
esmagados pelos pneus do impassíveis automóveis cujos proprietários
solicitariam, do poder público, compensação financeira pelos danos
sofridos à propriedade privada.
No
dia da audiência, o juiz, antes do bater o martelo e sentenciar
aquela família temente a Deus a oito anos de prisão, além do
pagamento de tudo que deviam à doméstica, cedeu a palavra à vítima
para que fizesse suas considerações finais.
A
moça foi de uma parcimônia exemplar: “Queria apenas que eles me
agradecessem por tudo que fiz”.
E
eu, que acompanhei tudo isto perplexo, com uma tremenda dor de
estômago, pensei: “Osmarina será algum dia livre de fato”?