sábado, 22 de outubro de 2022

O cavalinho-de-deus

 

Google Imagens


A exemplo de Machado e Graciliano: um general, habituado a falar para as paredes (mesmo quando se encontra entre pariceiros), autoproclamado tutor da nacionalidade por osmose, imerso em dúvida categórica, pontua suas parcas e solipsistas memórias.

Assaltado por um e outro choque de realidade, choraminga afogado em autopiedade: ninguém o entende, ninguém o obedece, ninguém o ama, ninguém o quer.

Sob o olhar seguidor de cópia sfumatada da sua mãezinha – vítima do pai e algoz dos servos e servas, procura inimigos debaixo da cama enquanto exercita seus soldadinhos de plásticos em custosas simulações de guerra. Infelizmente, suas suadas, gloriosas e imaginárias vitórias, ao fim e ao cabo, não lhe trazem qualquer conforto, alegria ou proveito - daí seu estado danado.  

A boca solta, navega a aposta de que acabe por dar entrada nalguma instituição psiquiátrica ou venha a cometer suicídio – afinal daquele mato, ou melhor, daquele quepe todo coelho sedento de sangue alheio é possível.

A maldição positivista que passa pano para o compadrio que assola e atormenta o mundo à volta, torna-se responsável pelo expurgo do horizonte futuro daquela casa portuguesa (com certeza) de acordo com o duvidoso brasão que orna o frontispício da reclusa morada situada no fim da rua de cima, à beira do precipício.

Um dia, num gesto imprevisto da sorte, trupica e cai sobre uma pedra angular. Desgraçado, tem o crânio afundado em postas. A perícia atesta, de pé junto, que não há nenhum vestígio de humanidade na cena do crime.

De acordo com desejo expresso em testamento, o velório é dispensado. Manifestado temor ao fogo, o corpo é sepultado numa cova rasa e anônima - sem choro nem vela ou qualquer marcação.

Após três anos, agora sob o seu próprio e sfumatado olhar impiedoso, num quadro 60x40, realizado por uma pintora autodidata ávida de reconhecimento, os restos mortais, secretamente, foram transportados, numa urna à prova de hackers, para a ilha dos esquecidos e ninguém nunca mais tocou no assunto.

O saldo restante é que, no orçamento da nação, sem que nenhum contator se dê conta, consta o officium obligatio de pagar soldo à filha estéril por toda a eternidade. Com base nisto, dizem os mais secretos pensamentos, dos mais recônditos e miseráveis indivíduos, que a manjada e deslembrada virgem viúva tem por hábito devorar a cabeça de qualquer um que ouse dar uma olhada na sua face oculta.


sábado, 15 de outubro de 2022

definições

 

Circle Limit I, M.C.Escher, 1958




o que é a chuva?

lágrimas, suor ou mijo de deus


o que é o meu?

aquilo que sobra depois que todo mundo escolheu


o que é a palavra?

é o bafo que sai da boca de quem bufa


o que é o fácil?

aquilo que ninguém tá nem aí, coisa sem valor…

se assemelha ao simples: que todo mundo despreza


 

sábado, 8 de outubro de 2022

se eles não vacilam…

 

Toilet Paper Panic, Ayshia Taskin, 2020



se eles não vacilam em te matar

e salgam a terra

para que tua semente jamais prospere…


se eles não vacilam em te açoitar

e te fazem desistir da própria vontade

para que beijes o chicote que te lacera a carne…


se eles não vacilam em te execrar

te humilham em público para que tenhas de gritar

que teu decretado dono é gente de bem…


se eles não vacilam em te pisotear

e apregoam que nasceste preguiçoso, inútil

imprestável para conviver em sociedade…


se eles não vacilam em te desumanizar

e dizem de ti que sois bruto, débil de pensar

e te fazem seguir tangido por capitães do mato…


se eles não vacilam em remunerar palavrosos

para te ameaçarem com as chamas do inferno

como se não vivêssemos nas trevas desde sempre…


se eles não vacilam em te transformar em coisa,

e te usam para limparem os pés podres

da sujeira e doença que fazem deles o que são…


se eles não vacilam, por que tu ainda refugas

renegas o chão em que estás plantado

e escolhes servir de mão para o verdugo?