sábado, 10 de setembro de 2022

Na beira dos macacos

 


Um pescador, Tarsila do Amaral, 1925

A professora Marialva – galega apessoada e ferina nos olhos, aceitou trabalhar na Beira dos Macacos depois de descobrir que o lugar tinha o que mais desejava na vida: praia, brisa e sossego.

Alugou uma casinha e decidiu que ali, naquele povoado de gente fina, criaria seu filho, cuidaria de uma horta e, quem sabe, morreria, um dia, nos braços de um homem gentil.

Na sala de aula insistia em preparar trinta alunos para um mundo em construção, enquanto nos dias de folga se estirava na alvíssima prainha do Bororé a ouvir a alegria do seu menino, na prancha, a ensaiar manobras nas suaves ondas que rebentavam próximas aos seus pés.

Em todo idílio habita uma serpente. E Marialva enxergou um homem (??) se masturbando ao lado do coqueiro seco. Seus olhos longínquos doeram. Por que cada centímetro a descoberto do corpo de uma mulher é um chamado à pornografia? Humilhada, chamou o filho.

Foi falar com o cabo do destacamento, ali, na porta da bodega. Por três vezes fora alvo de lascívia, disse. Sentia-se vulnerável, reforçou. O militar falou que estava anotado e que ficasse tranquila, investigaria.

Em casa, toda noite ao botar o menino para dormir, encafifava: Ousaria o tarado aproximar-se, tocá-la? Começou a ter insônia.

Um dia decidiu que levaria suas preocupações até onde fosse possível. E foi à pracinha conversar. Falou com um, com dois… falou com tanta gente e não encontrou jeito de se sentir segura. A situação piorou quando viu o tal homem e o fardado, ridentes, partilharem uma meiota de cachaça.

Investigou por conta própria: o sujeito era capataz no sítio Belo Coco, casado, três filhos… Procurou a esposa. A pobre não acreditou e a expulsou aos berros - “Em nome de Jesus, meu marido é pessoa de bem. Como posso acreditar em ti, mulher sem homem?!”

- Procura o Biu, alguém disse baixinho e passou-lhe a visão. Marivalva decidiu que se os costumes estavam jogando contra ela usaria um coringa: buscou Nego Biu.

O chefe do tráfico disse que ficasse de boa que, por seus olhos verdes, por seu porte, seu trabalho, sua palavra, daria seu jeito e desapareceu sonhando com a professora casada com seu irmão pescador.

Na Beira dos Macacos nunca mais se viu jacaré brechando as mulheres nas praias. Ninguém morreu. O tarado foi mandado pros cafundós dos judas, com um selo na testa…

Na festa de Iemanjá, Marialva conheceu Deolindo e se apaixonou pelo perfumado jangadeiro. 



sábado, 3 de setembro de 2022

cotidiano

 

O Pássaro Pintado, Václav Marhoul, 2019



acordei passarinho

mortinho da silva

disse oi a um parente que, em sofrência, desbrilha – argh

um transeunte jogou escuridão no meu rosto - aff

o pessoal do vila botou a viola no saco e, eita

a vida me acertou…


morro, mas não morro em vão

sigo as partículas,

migalhas camufladas do fantasma atômico

que me criei

para atravessar paredes

no rastro da ilha

do outro lado

da sala


a dúvida é

eternizo, desapareço ou fico?


daí, acordo… passarinho

morto da silva


 

sábado, 27 de agosto de 2022

Conversa no zap

 

Nome de Deus, Hafiz Osman, 1693


       Uma conhecida me procura pra falar da morte de uma amiga. Surpreso: digo que sinto, que lamento, que a falecida agora é uma estrelinha brilhando lá no céu e pronto. Ficaria por isso mesmo se eu não engatasse uma conversa embalado pela lembrança dos seus olhos verdes gritantes e um sorriso de covinhas lindamente provocantes.

          Falo da beleza da nossa velha, santa e de sonhos mil, nossa linda mãe Bahia. E me vem à lembrança a gostosura da comida – comida de santo, autorizada pelos Orixás… Vixe, causei um arrepio. A moça, chocada, diz que obedece a um único deus.

          Metido a besta, penso com meus botões (desejoso de imitar algum poeta) “oh, deus”! Insisto: “oh, deus, tu casmurro, cheio de mungangas, ciumento e maltratador”… E teclo: - A Bahia é mais, a Bahia está longe dos bloqueios, dos preconceitos, de qualquer necessidade esquizofrênica de ser desamado?

        Pensei no deus que habita todos as coisas (como querem alguns filósofos) e meio que me peguei a orar: “oh deus que pretendes ser meu, deus cuja crença sinto que é até possível se acaso não praticasses amor desigual, fala comigo, se sois de fato paz e amor entre os viventes...”.

          E lembro que a melhor coisa que me aconteceu neste ano foi ver e ouvir Gil, em família (filhos, netos e bisnetos), mostrar, no alto dos seus 80 anos, a linda árvore que é no paraíso que imaginamos.

         Sinto que a moça, embora diga legal e amo, não ouve a si mesma nem aos meus pensamentos. Mas também não a escuto e repito: “ah, deus, bonito foi teu sinal, então por que ignoras? Que a Bahia é mais”!

          Disse isto ancorado no fato de ter nascido em Ilhéus, com um pé na Igreja Matriz de São Jorge e outro no terreiro de Nanã, minha madrinha (em cuja casa, através de um buraco de fechadura brechava Iemanjá pentear os cabelos sentada à beira da fonte que havia no quintal sem que isto me impedisse de vestir a batina de coroinha e ajudar na celebração da missa e um dia compreender que o único inferno que pode subsistir na nossa alma é ter causado mal, machucado alguém: o remorso é uma estaca eternamente enfiada em nosso coração).

        Mas não quis acirrar mais ainda o conflito. E com a alma tão longe, emendei: “nunca me doeu, e nem doí, o fato de amar a comida, o clima, o jeito, o cheiro, o dengo… Porque sou a Bahia que trago na memória (ouviu deus!). E, finalmente, pude fazer eco ao poeta: Triste Bahia, oh quão dessemelhante estás…

         A moça se desculpa e diz que vai voltar ao seu dia a dia, se despede não sem antes me dar oportunidade de mencionar, lembrando Caetano: “Sou uma bandeira branca enfiada num pau forte/ trago no peito a estrela do norte”. Ela parece rir. Eu, solitário, clamo: “oh, deus que não me abandonaste, por que tanto me maltratas”?