sábado, 18 de junho de 2022

palavras ao ar

 

Avenida Paulista, Fer Caggiano, 2013




pego leve

amanhã virá isso e aquilo

hoje só aqui agora

e a perspectiva do terror

de ser convocado pelos mortos


vou te dizer, meu amigo

já foi pior

hoje continua


passeio pela avenida principal

a fingir que esta é a melhor cidade do mundo

mas ela, a avenida/cidade

é cheia de propósitos

(todos para amanhã)

e dez horas da noite de domingo é impossível

um proletário comer um sanduíche

no centro financeiro

desta preguiçosa e provinciana cidade


de barriga vazia pego um ônibus na volta pra casa

e se me lembro bem

esqueci que nada há na geladeira

portanto, dormirei faminto e

sonharei com um paraíso

melhor que perder de vez o apetite

no amanhã

(ah, de novo o danado futuro)

na boquinha

um pastel ou fatia de torta

na padaria do bairro

satisfeito por continuar leve

nem isso nem aquilo

hoje só aqui e agora…


minha segunda filha diz que sou herói

bem, até agora me valho

a sorrir

e sorrindo, arremesso ao ar

melhores que eu

tais palavras

um tanto amarelas


 

sábado, 11 de junho de 2022

Crônicas Pandêmicas 2

 

Eleven A.M., Edward Hopper, 1926



5. Em época de avanço da extrema-direita e do coronavírus, a série Hunters coloca uma pulga gigante atrás da nossa orelha. Somos levados ao centro da luta contra nazistas que foram cooptados pelo governo norte-americano, por ocasião do término da II Guerra Mundial e assumidos como “armas” na luta contra o comunismo. Essa multidão de assassinos acaba por assumir postos chaves na “terra dos livres e o lar dos bravos” e se dedica ao seu esporte predileto: preparar o advento do 4º Reich.

Um inocente xarope de milho, produzido por uma inocente empresa, fará todo o trabalho: matar metade da população dos EUA e tomar o poder na maior potência mundial. É aí que surge um grupo, formado por judeus, uma freira, um ninja japonês e uma negra que, à custa de muitos tropeços e feridas, consegue anular a meta da diabólica conspiração.

Porém, no último episódio nos invade uma incômoda sensação, que acaba por colocar a série na categoria terror. Assistimos os minutos finais, com a impressão de que, com certeza, não estamos a salvo, nem mesmo entre os nossos (ou, em meio àqueles que lutam ao nosso lado). A paranoia toma conta dos nossos corpos.

Daí é de bom alvitre ficar atento com a mão que nos alimenta e/ou nos cumprimenta, pois é possível esteja rolando um virusinho nas relações ditas afetivas, amistosas e cordiais. Mas, que não se perca a esperança: ainda existem avós e netos — os últimos confiáveis, segundo os roteiristas. Por isto, fiquem atentos à história da própria família e, sobretudo, coloquem-se em perspectiva na luta da civilização contra a barbárie, afinal é fatal ser pego com as calças nas mãos na hora que a jiripoca piar.

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6. Somos nossas circunstâncias. E aí, meus povos e minhas povas!… lembram do lero-lero do Edu Lobo: “gosto mesmo de fulana mas sicrana é quem me quer”. Pois é, criticar o povo brasileiro é fácil, quero ver viver com salário-mínimo, sub ou desempregado, sem-terra, sem teto, miserável… e com a mídia te manipulando, a milícia te acossando, a polícia te matando, o agronegócio te lascando, os políticos te roubando… Somos tão massacrados que temos vergonha de mostrar a cara (como desejava o Cazuza). Mas, vai vendo, uma hora a gente pega a preá. Uma hora a gente sacode a poeira, dá a volta por cima e vamos jogar boliche com cabeças coroadas (conforme desejo de um velho amigo) e partir pro banquete. Por mim, bastaria aplicar a lei (e olha que temos carradas), simples assim. Enquanto isto, salve Bacurau, salve Petra, salve Mangueira e todos os tantos carnavais…

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7. O Luiz Felipe Pondé, dublê de filósofo e mungangueiro profissional, bem que tentou vender a alma ao diabo, mas o capeta, curto e grosso, recusou. Eduardo Bolsonaro decretou que não se precisa ler livros para ser conservador (entenda-se extrema direita), mas simplesmente dar audiência ao Alerta Nacional do Sikêra Júnior — um verdadeiro mestre na arte de cancerizar geral e ainda sair com um troco.



sábado, 4 de junho de 2022

Crônicas Pandêmicas

 

Universes, Yosef Joseph Yaakov Dadoune, 2003

1. Quando o fascismo, associado aos liberalistas econômicos e o pentecostalismo de resultado, conseguiram estabelecer velocidade cruzeiro na tarefa de dominar o mundo eis que, no dia 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi alertada sobre vários casos de pneumonia na cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China.

Uma semana depois, em 7 de janeiro de 2020 as autoridades chinesas confirmaram que haviam identificado um novo tipo de coronavírus, o SARS-CoV-2, transmissível por morcegos, capaz de causar a morte de seres humanos. Segundo uma estimativa do jornal The Economist, seria possível ocorrer entre 7 a 13 milhões de óbitos, algo comparável às mortes durante a 1ª Guerra Mundial.

Dois anos após o início da pandemia, entre vacinas, vacilos, cuidados e doses brabas de negacionismo, um novo normal tornou-se uma perspectiva remota. O mundo, como conhecíamos, desde aquele dia já era. Restaram apenas algoritmos sacanas e a uberização da vida.

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2. A guerra híbrida segue em curso e se desdobra: temos aí a guerra comercial entre os EUA e a China. Em jogo, o domínio da tecnologia 5G pelo mundo afora além da supremacia militar na Ásia e no Oceano Pacifico.

A China é uma superpotência, inegavelmente. Em 60 anos, saiu de uma realidade medieval e agrícola para alcançar o patamar de potência industrial, comercial e científica. Os EUA, guardiões do livre mercado, não aguentam conviver com este concorrente à altura.

Os valentões do velho oeste, e seus capangas, passaram então a fomentar a xenofobia ao apregoarem que o mal estar causado por um vírus que produz pneumonia e leva à morte os indivíduos infectados é obra da genialidade chinesa em busca do domínio total do mundo.

Em vez de solidariedade, o governo Trump declarou que nada faria contra a pandemia porque os chineses já estariam fazendo o que é preciso — um modo de dizer que não iria mover uma palha para evitar que mais e mais norte-americanos e cidadãos pelo mundo afora morram à míngua, o que deveras fez. Enquanto isto, a China construía um hospital para 1000 leitos em 48 horas. 

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3. Salve-se quem puder. Com o coronavírus a recessão só tende a piorar. A produção está sob o efeito da lei da gravidade: cai em direção a lugar nenhum. Mas não perca a esperança, cidadã. Os preços continuarão a subir. Afinal, no capitalismo é assim: não existe solidariedade. É lucro acima e apesar de tudo. Em tempos pandêmicos, questão de três meses, o valor do litro do álcool gel aumentou em mais de 700%. Tabelar os preços, ou manter vigilância contra aumentos abusivos, seria uma medida de grande impacto e sinalizaria um cuidado com as pessoas, pois não? Errado. Sinto muito, mas a senhora não sabe das coisas, não entende nada de economia. Creia, como pensa o desgoverno que nos assola, na capacidade do mercado de se auto regular e aguarde a liberação da primeira parcela do 13º dos aposentados — medida supimpa para evitar a depressão que se descortina no horizonte.

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4. - O paraíso anunciado pela direita tem um céu de mentira.

- E o paraíso da esquerda, por acaso é verdadeiro?

- Para a esquerda não existe paraíso.