sábado, 16 de abril de 2022

odisseia

 

Tillia Durieux (atriz austríaca) interpreta Circe, óleo de Franz von Stuck, 1912




me amas assim?

preciso ao menos cinco doses!

minha razão não compreende

esse sentir (ah, teu tom, teu olhar além…)

diante da sede de alegria e prazer


a aguardente me permite

navegar a sedução

mas também conduz ao susto e ao sono:

inteiro à tua mercê

isto é desigual, mulher,

impossível te alcançar

– que há comigo que não controlo,

no delírio de te entender, este artifício?


e cisma minha imperfeição, melhor esquecer

sereia encantada: 

teu canto em meus ouvidos

este faz de conta

meu sonho

acessível a todo instante...

basta que me embriague a solidão



 

sábado, 9 de abril de 2022

tempus mortis

 

The Damned Soul, Michelangelo, 1525


em meio a pandemia

o papa caminha deserto pela praça de são pedro

em direção ao altar de sacrifício

uma bruxa dança solitária numa praça de sant’orozo

clamando tesão às forças telúricas

os pobres do mst distribuem toneladas de alimentos

        a outros pobres das cidades

os profissionais da saúde dormem no chão dos hospitais

exaustos de incharem estatísticas


mas nada disto funciona:

o mundo continua estúpido,

o mundo desconhece os tempos verbais além do eu

e não faz a menor ideia

de como sair da armadilha

do paradigma criado

em salas engravatadas

acondicionadas à aventura

irresponsável diante do espelho

onde faz a barba, passa rímel… narciso em si mesmo!


eis que hoje muitos irão às compras

eis que um tilt no sistema avisará em horário nobre

que tudo acabará numa coluna de sal…

mas aí cortam para os comerciais

e com a boca cheia de estupidificantes

seremos abordados pelos mercadores da fé

(os tais que matraqueiam em nome de um deus

cercado de advogados e policiais)

a nos oferecer a sobrevivência das baratas -

ora, se o comportamento único e oficial fosse a solução

as formigas, os cupins e as abelhas

seriam os soberanos do planeta…


em meio a pandemia

os danados caminham secos de lágrimas

não choram mortos, desconhecem a empatia,

apenas profanam

a linguagem, a beleza, o sagrado…

em meio a pandemia

assistimos a injúria impune dos danados -

escandaloso repúdio à vida e à consciência alheia




sábado, 2 de abril de 2022

A viagem


Matched Marriage, Quentin Marsys, 1530



Dissemos um ao outro: vamos viajar, sem volta! Era um tempo duro, suado, nada de dinheiro fácil, havíamos de economizar. Ao contar tostões alcançamos suficiente para comprar a passagem mais barata num daquele ônibus pirata. Aí justifiquei: luxar pra quê, se desta vida não se leva nada? Além disso, é uma aventura, sem pressa para chegar a algum lugar, viagem de curtição, com paradas aqui e ali, tempo de sobra para curtir a paisagem.

Ficara bom nesse negócio de inventar desculpas para não fazer a coisa certa. Mas o que sabia eu da coisa certa? Naquela longa época tinha muito poucas ideias. Sobrava o que eu sentia e pronto…. apesar dos protestos e das advertências (que não ouvia e se ouvia não entendia).

Juntamos as trouxas… só não juntamos as escovas porque aí seria nojento e não estávamos a fim de ser chamados de hippie ou, pior, comunistas… e fomos para o ponto, aguardar a embarque.

Não invento: o local estava tomado de gente. E chegava mais e mais. Uma horda do tipo retirantes e nós iguais. Porém, apenas eu e ela havíamos combinado partir para aquele lugar algum.

Procurei-a para confirmar, mas envolta pela multidão começara a se afastar cada vez mais. E esta constatação jogou-me num abismo: sabia de fato o significado da partida?… qual o ônibus?… qual a companhia? Em meio a esse frenesi, percebi que havia começado a perder a noção e a lembrar que esquecera de perguntar ao vendedor se o ponto era aquele mesmo e o qual o horário de partida? 

Minha derrota foi presumir que ônibus, todos eles, passam pela mesma estrada, a estrada na qual me encontrava. E se era assim, melhor acalmar: o ônibus que me (nos) levaria apenas de ida a algum lugar, a qualquer momento pararia bem ali, no ponto em que estava, envolto por esta multidão que me desconfortava e aumentava a distância entre eu e aquela… mas, onde estaria agora?

Presumi além da conta. Minha esperteza deu chabú. Desesperado, procurei o número telefônico da empresa… queria alcançar o setor de informações… mas, nada, nada trazia nos bolsos além de um contrato manuscrito em chinês tradicional em quatro folhas de papel almaço. Traição!

Havia sido traído. Mas calma: fora eu meu próprio traidor. Qual o quê? Tentei abrir espaço entre as gentes, buscando alívio. Queria falar com ela, prometer em alto e bom som que iria ressarci-la mas meu esforço se mostrou vão e paradoxal: cada vez que buscava me aproximar, mais ela se afastava e mais eu me afastava do ponto em que deveria embarcar no ônibus que nos (me) levaria a algum lugar e a multidão em volta não dava a mínima para qualquer movimento que eu viesse a fazer, abarrotado de tralhas em louca disparada, através de ruas, vielas, becos, solos e subsolos – em busca de encontrar o guichê onde havia comprado a passagem mas desembocara num mundo onde a verdade ia ficando cada vez mais inacessível.

Impossibilitado de alcançar, quis gritar, xingar, maldizer… grimas ansiosas de liberdade vieram em meu socorro. Larguei mão, abri as comportas do desespero e do alívio. Busquei refúgio no primeiro templo que encontrei pela frente. O sacerdote não se deu ao trabalho de responder minha indagação convulsiva sobre o que estava acontecendo? Condescendente, me ofereceu um lenço branco que acabei por esquecê-lo no bolso de uma velha calça nos anos que se seguiram.

Reparem: esta é uma estória de fraqueza. Não lhes contei aquilo que escapa por não buscar os instrumentos que me permitissem entender o que precisava entender. Tudo que acabei de narrar foi uma pequena tentativa de contextualizar um mero sonus convulsus: pesadelo, que tem me torrado a paciência cada vez que lembro dele.