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sábado, 12 de novembro de 2022

a lenda do ramo de ouro

 

Festival de Corpus Christi, Francisco Goya, 1813




ó acúmulo de fantasias,

práticas mágicas e religiosas,

superstições, ritos e sacrifícios…

preciso controlar o incontrolável,

o rio tumultuoso das manifestações d’alma


ó festins diabólicos, imolações humanas,

progressão sangrenta, condutas rudes e perversas

rituais antropofágicos: quero a comunhão heroica

o simbolismo, profecias modernas

evitar a catástrofe final… alcançar o sublime


ah, minha humanidade

sigo vítima da tua fecundidade:

quanto mais me multiplico

instantâneo me torno irrelevante,


inútil, me grudo à bichalidade

onde as pulsões buscam me fazer esquecer

tudo que de fato importa…

e eis que a revolução

alegre, desde as cinco da tarde

passa ao largo em desfile no rumo oposto

ao sentido do trem que insisto em embarcar



sábado, 5 de novembro de 2022

sobre o amor

 

Cupid and Psyque, Edvard Munch, 1907


o amor é um mistério

escondido detrás de palavras

versos, frases de efeitos


ah, quantas vezes

me perdi em seus labirintos

e fiquei mudo

diante da essencial timidez do amor

(ousada é a paixão)


amado/amante

dizei pouco do amor

por pudor, falai quase nada

daquilo que vos confunde… eu sei!


é preciso sentir o amor

além do desejo (essa quimera)

e permitir que renasça

finda a fértil primavera


amei pouco, tantinho…

quem sabe um dia aceite

do amor todos os espinhos


 

sábado, 29 de outubro de 2022

instante 53

 

Boy with a Basket of Fruit, Caravaggio, 1593




paladar:

fale a verdade, sempre

recheada com poesia,

mas não pese a mão nos temperos

para não envenenar o liberto!



sábado, 8 de outubro de 2022

se eles não vacilam…

 

Toilet Paper Panic, Ayshia Taskin, 2020



se eles não vacilam em te matar

e salgam a terra

para que tua semente jamais prospere…


se eles não vacilam em te açoitar

e te fazem desistir da própria vontade

para que beijes o chicote que te lacera a carne…


se eles não vacilam em te execrar

te humilham em público para que tenhas de gritar

que teu decretado dono é gente de bem…


se eles não vacilam em te pisotear

e apregoam que nasceste preguiçoso, inútil

imprestável para conviver em sociedade…


se eles não vacilam em te desumanizar

e dizem de ti que sois bruto, débil de pensar

e te fazem seguir tangido por capitães do mato…


se eles não vacilam em remunerar palavrosos

para te ameaçarem com as chamas do inferno

como se não vivêssemos nas trevas desde sempre…


se eles não vacilam em te transformar em coisa,

e te usam para limparem os pés podres

da sujeira e doença que fazem deles o que são…


se eles não vacilam, por que tu ainda refugas

renegas o chão em que estás plantado

e escolhes servir de mão para o verdugo?


 

sábado, 1 de outubro de 2022

ouvindo uma tese de mestrado

 

Rascunho, Yiannis Tsarouchis, 1953


estou agora

onde não sou

o que fui

e ainda não atingi

o que serei…


estou presente

entre uma coisa e outra

no meio gesto

no meio do gesto

narciso em feedback


meu experimento

é a escolha de seguir

modificar

ou interromper

esse fluxo… em processo


 

sábado, 24 de setembro de 2022

apenas um poeta

 

The Poor Poet, Carl Spitzweg, 1837




não me peçam nada

além de palavras:

– sou apenas um poeta


ai, quem me dera

chegasse a maiakovski

chico, neruda ou drummond…


mas me fiz assim, ordinário

– a comungar com a própria solidão


por favor,

não me peçam nada

mal consigo me entender

com a rotina,

quanto mais…!


cotidiano, imploro:

ai, quem me dera

não desejar mais nada,

finalmente

acertar as contas

com minh’alma sucinta



sábado, 3 de setembro de 2022

cotidiano

 

O Pássaro Pintado, Václav Marhoul, 2019



acordei passarinho

mortinho da silva

disse oi a um parente que, em sofrência, desbrilha – argh

um transeunte jogou escuridão no meu rosto - aff

o pessoal do vila botou a viola no saco e, eita

a vida me acertou…


morro, mas não morro em vão

sigo as partículas,

migalhas camufladas do fantasma atômico

que me criei

para atravessar paredes

no rastro da ilha

do outro lado

da sala


a dúvida é

eternizo, desapareço ou fico?


daí, acordo… passarinho

morto da silva


 

sábado, 20 de agosto de 2022

gastura

 

Finger Snack, Christian Ludwig Attersee, 1965


ontem sonhei com fulana:

danado é que

não lembro mais da sua aparência

faz tanto tempo desde

qu’eu ficava horas

ouvindo sua voz

mansa

a dizer coisas

que me bagunçavam por dentro

sem saber como dizer não…


ontem, pra variar

ela cuidou de esfregar

os dedos dos pés

carinhosamente

no meu rosto

que de tão íntimos

desculpei o cheiro acre

que exalava dos seus dedinhos…


fulana sempre me tratou bem

verdade,

mas o drama

é que eu passei o sono inteiro

temendo ser flagrado

acariciando aqueles pezinhos bofedidos,

que acordei exausto com o esforço que fiz

para o marido dela não dar as caras no sonho.


 

sábado, 13 de agosto de 2022

epifania

 

The Musician Angel, Vicenzo Irolli, 1905


a alma é vasta

dificultosa jornada…

quem atinge metade do caminho?

sem a ajuda da poesia

mãe de infinitos, ó gente!


ah, rouxinol, tu não tens sexo…

anjo que abrandas, paterno

as cruezas da alma


e quanto a ti, cotovia

te bem sei graça, repertório

sublime da liberdade…


trindade maviosa:

estremece o coração,

desperta no sonho

inesperada melodia,

súbita compreensão…


 

sábado, 6 de agosto de 2022

quatro quadras

 

Il poeta, Francesco Didioni, 1862



na hora da minha morte

os ponteiros dos relógios

desistirão de perseguir a rotina

e ficarei a mercê do nada

            ...

na minha inocência de criança

pai é aquele que afugenta

o monstro debaixo da cama

enquanto a mãe constrói o futuro

            ...

o animal humano

amontoado de carências

inseguranças e incertezas

costuma morder

                        ...

amor,

não me acorde amanhã

não quero sentir saudade

do que vivemos hoje


 

sábado, 30 de julho de 2022

fardo

 

Os Portadores de Fardo, Vicent van Gogh. 1881


é um fardo ser

eu que já fui fardo para minha mãe

para os meus amigos

para os meus amores

que passo boa parte do tempo

a arrastar correntes fantasmagóricas

que mesmo dificultoso

nunca me deixei ir que nem pedra

ladeira abaixo despencado

mas ao contrário sempre insisti

em empurrar morro acima

a peso de ser eu…


almejei ser pluma um dia

porém o máximo que consegui

foi esvoaçar vagabundo

feito saco plástico

tangido pela ventania

em plena praça pública

silenciosa e vazia


é um fardo ser eu

que nunca me molestei por minhas faltas

que nunca encarei as minhas falhas

que nunca ri da minha gravidade

que nunca arremessei longe a carga

e mesmo desconfortável

ainda me dou tanta importância

ainda me ufano das minhas pretensões

ainda nutro esperança de um dia virar estátua

e servir de cagadouro para pássaros


 

sábado, 23 de julho de 2022

instante 49

 

Nu, George Seeley, 1910


me recolhi

acendi o candeeiro

sussurrei canções de ninar

deitei no colo da Terra

e quietei

a observar a semente

cumprir seu propósito:

nascer

na primavera…




sábado, 16 de julho de 2022

exercício de beleza

 

Google Imagens


a família gil é linda

e, que nem na canção,

continua linda, continua sendo…



a família gil somos nós,

passado e futuro redimidos

harmonia entrelaçada em nós

tal qual um destino, uma sina

longe, bem longe do odor das bestagens da besta



quero fazer parte da família gil

rir que nem ri a família gil

cantar como cantam

brincar como brincam

amar como amam

viver como vivem

a posar bem na foto

que só a família gil é capaz de posar



a família gil é um presente

brasileiro, genuíno, além de todo truque

não tem pegadinha na família gil

não existe surpresa ou estranheza

na família gil, tudo ali é,

nada é obscuro, não existe subterfúgio

muito menos ardil…

com a família gil não existe paradoxo

ninguém ali viajaria no tempo

com o propósito de impedir o encontro

da dona Claudina Passos com o ‘seu’ José Gil Moreira

e a gênesis da Bela, Flor, Sol, Sereno, Bem…



brisa refrescante e fecunda, a família gil

habita o extremo oposto das tempestades

lugar gentil, tal qual

um dia de festa em qualquer lugar do mundo

possível, ao lado de parentes, amigos, aderentes,

colegas, conhecidos, vizinhos e transeuntes

e de quem mais queria chegar

e botar fé nos deuses

na força dos orixás

honrar e celebrar

o sacrifício ético

exercício de transubstanciação

da arte de ser

nada além

que mero humano


 

sábado, 9 de julho de 2022

minhas amigas

 

Cinco Garotas de Guaratinguetá, Di Cavalcanti, 1930


minhas amigas me gostam

mas isto não impede que desconfiem de mim,

repleto de más intenções


não são bobas, minhas amigas

conhecem minha fraqueza

sabem dos meus olhos travessos

a brecharem axilas, covinhas, dobrinhas…


ah, que me matem os decotes epifânicos

blusas epidérmicas

saias serelepes

joelhos atrevidos

curvas que enchem a boca d’água

               e fazem a gente perder o folego


que não me flagrem, as amigas,

num olhar inescrupuloso, fraco e babão…

que fiquem a rir

do meu jeito sátiro, pouco homem


adoro minhas amigas…

um dia, melhorado,

nego que escrevi estas linhas

e me caso com uma delas


 

sábado, 2 de julho de 2022

Composição 4

 

Composition VIII, Wassily Kandinsky, 1923



(Viver imerso na real

De olho naquilo que é fake)

O amor disse ontem que me ama.


Probidade não se jura

Tendo o mundo na vitrine

Nosso afeto que ilumine

A potência da ternura


 

sábado, 25 de junho de 2022

infimidade

 

Templo dos Dez Mil Budas, Hong Kong


uma vez disse a um amigo

que não suportaria

um ente querido morrer antes de mim,

sofreria muito,

preferiria ir primeiro…

ele, espantado, me olhou nos olhos e respondeu:

que pensamento egoísta

pois desejo ser o último a partir

quero que, enquanto puder,

na última despedida dos meus

seja minha a mão a dizer adeus


demorei para compreender essa lógica

mas ponderei: - já pensou?

quando me apartar

em vez de solidão e vazio

ser saudado por todos

que, alegre, saudamos no partir


e este passou a ser o meu mantra

não me preocupar com a partida

afinal – eis o meu conforto

imaginar que há sempre alguém a nos saudar e honrar


não trato aqui de religião

não frequento culto

tampouco trabalho para erguer igrejas

apenas me presto a encontrar amigos

no sagrado templo eventual de um bar

onde, naturais, fazemos libações

cantamos a existência

e saudamos a viva alegria de ainda estarmos aqui

a testificar um instante

um tantinho de memória

uma nesga de lembrança

na santidade dos amados que partiram

sem jamais mencionarmos que morreram


por isto, digo: no dia em que me for

por favor, camaradas, façam alarde

se enfeitem, cantem, dancem,

comam, bebam, gargalhem

dêem vivas, gritem hurra

vossa alegria há de expurgar os meus defeitos

e fazer germinar virtudes

jamais sonhadas

pois eu, átomo,

invisível e silencioso

ao me juntar à vastidão do universo

serei mais ínfimo do que sou agora


 

sábado, 18 de junho de 2022

palavras ao ar

 

Avenida Paulista, Fer Caggiano, 2013




pego leve

amanhã virá isso e aquilo

hoje só aqui agora

e a perspectiva do terror

de ser convocado pelos mortos


vou te dizer, meu amigo

já foi pior

hoje continua


passeio pela avenida principal

a fingir que esta é a melhor cidade do mundo

mas ela, a avenida/cidade

é cheia de propósitos

(todos para amanhã)

e dez horas da noite de domingo é impossível

um proletário comer um sanduíche

no centro financeiro

desta preguiçosa e provinciana cidade


de barriga vazia pego um ônibus na volta pra casa

e se me lembro bem

esqueci que nada há na geladeira

portanto, dormirei faminto e

sonharei com um paraíso

melhor que perder de vez o apetite

no amanhã

(ah, de novo o danado futuro)

na boquinha

um pastel ou fatia de torta

na padaria do bairro

satisfeito por continuar leve

nem isso nem aquilo

hoje só aqui e agora…


minha segunda filha diz que sou herói

bem, até agora me valho

a sorrir

e sorrindo, arremesso ao ar

melhores que eu

tais palavras

um tanto amarelas


 

sábado, 28 de maio de 2022

instante 48

 

Caminhante sobre o mar de névoa, Caspar David Friedrich, 1818 
Releitura feita por Kim Dong-kyu, 2013




olho o horizonte:

infinito e nada

sou eu, atônito…


não fosse haver espanto

jamais perguntaria o que sou

para onde vou…


tem muito o que explicar

esse vazio… cada vez que dói


meio em paz com minha mente

distante de tudo que é familiar

me junto aquilo que desconheço

arranjo coragem

alcanço a liberdade plena

nas asas de borboletas virtuais



sábado, 21 de maio de 2022

cabeça branca

 

John Locke, Godfrey Kneller, 1779




cabelos brancos

ondas espraiadas

fios de saudade

trançados

em rosários de esperanças


suaves lembranças

abraçadas

a fios negros teimosos


bela cabeça branca

pontuada de remorsos


 

sábado, 7 de maio de 2022

por dever basta boleto

 

5inco, Alberto Pereira, 2019


gosto muito de relógio

mas gosto mais de contrariá-lo.

antes, no meu tempo de criança, os odiava:

queria dormir,

ficar na cama depois de acordar

era o maior dos prazeres…


hoje não,

se a vida me joga fora da cama bem mais cedo,

aprendi a gostar do passar das horas

(amo as manhãs e as noites

as tardes me entristecem

e as madrugadas me estremecem)

aproveito o tempo

olho a rua

vejo o dia

distingo cada ruído atrevido

a competir com o tagarelar das maritacas…

qual a formato daquela nuvem?

sopra o vento para onde?

os ramos das árvores oscilam mansos

verde dançante que não sai do lugar

(diferente do que explodiu nos meus olhos

em João Pessoa, a doer em mim que

vindo de fora, viu verde pela primeira vez)…


ao encontrar tempo e motivo para ser velho

e babão (choro por qualquer besteira)

confesso: bem melhor é viver

infinitos instantes.