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sábado, 25 de setembro de 2021

comédia humana

 

The Wedding Dance in the open air, Pieter Bruegel o Velho, 1566



coisinhas indispensáveis em qualquer paraíso:

sol,

brisa,

rede,

poesia,

cerveja gelada,

tira-gosto,

boa companhia…


o resto é cotidiano:

boletos, mercado, médico

e, vez em quando, uma arenga, um luto, uma tristeza

afinal, ninguém consegue viver nas nuvens o tempo todo.



sábado, 18 de setembro de 2021

canção no ar

 

Great Still life on pedestal, Pablo Picasso, 1931


coloquei minha angústia para dormir

e lá está, quietinha, numa tela

a enfeitar o corredor


porém, sempre que passo por ela

me ocorre possuir

quase ou nenhum talento

para pintura…


foi daí que inventei um anjo:

planos multidimensionais

cores que tagarelam

em meio às infinitas desculpas

e perspectivas esfarrapadas...


é que aqui em casa

busco não machucar o silêncio

torno possível

(mesmo desafinado) praticar

todo dia

uma velha canção de ninar



sábado, 11 de setembro de 2021

recado

 

The Whisper Darkness, Wojtek Siudmak, sem data




ao receber mensagens

(quantas abomino...)

nem bem leio (ou ouço) as primeiras palavras

(algumas fáceis, tão evidentes...)

imediatamente salta aos olhos o sofisma

(argumento corruptor do pensamento)

por detrás de aparente sabedoria:

existe sempre uma esperta armadilha


vixe, como são enfadonhas

tediosas tais mensagens...

demoram a chegar a termo

exigem tempo demais da atenção

tal qual um sermão de jesuíta...


quando enviarem mensagem, recomendo:

- direto ao ponto!

que a vossa síntese provoque reflexão imediata

enfim, proselitismo é excesso

e já estamos até o talo de lixo e inutilidades


(nada existe de bonito

em expressar em duas palavras

tudo aquilo que pode ser dito com uma)


dói ver estes simulacros poéticos

perdidos em apelos sensíveis

(vendedores de carnê)

cheios de preconceitos e clichês afetivos

fantasiados de efeitos especiais


digo aos tantos que me enviam mensagens

- não necessito de comoção

tampouco de lágrimas fáceis

em meus olhos inundados

minha alma-alvo

ansia apenas por uma palavra,

a certa… avaliem portanto:

é preciso mesmo feri-la?





sábado, 28 de agosto de 2021

projeto

 

Open Your Hands Wide, Embrace Happiness, Takashi Murakami, 2010


faço das tripas coração

momentos bons

momentos maus

e é isso: levando,

assando e comendo...


se soubesse de tudo,

que motivos teria

para seguir diante?


justo que difícil

mexo e remexo

e não faço ideia

do que venha a ser

essa tal felicidade

daí

me misturo

e quanto que embolo

mais me depuro



sábado, 21 de agosto de 2021

ode ao nordeste

 

A bandeira da onça, Ariano Suassuna, Pedra do Reino, 1970


ah, minha alma mais antiga

meu nordeste encantado

sertão, caatinga

relampejar de delírios

oitava acima do normal

voz a desafiar lonjuras

desgraças e saudade...


ah, galega, moira minha, tudo no nada

meu engenho, meu mel

minha cachaça, pão cozido em miragens

nordeste recheado de reinos,

dragões, pavões misteriosos, visagens

príncipes e princesas,

bandoleiros heroicos, amores fatídicos

vinganças homéricas, dores abissais

matutos astutos quais semideuses

e madrastas cruéis que nos roubam os pais

em luares habitados de presságios e rapinas


ah, meu nordeste de infinitos tempos

cruzados na ciranda melancólica das horas

que a fantasia se nos cumpra e salve

da secura do clima e dos hereditários coronéis

meu nordeste dos bumbas e pastoris

maracatus, cavalhadas...

folguedos doces, tão doces quanto as cocadas

os quebra-queixos, rapaduras e queijadas

que as mestras (sacerdotisas pagãs

avalistas do mistério cristão)

entregam aos corpos e às almas

em terreiros e quintais, a hóstia comezinha

o espanta-medo das mulheres-meninas

que choram solidões dos seus meninos-homens:

galalaus em longínquas partidas

prisioneiros de promessas


ah, meu nordeste

apesar de tudo, no lugar de lágrimas

forjaste um sorriso estridente

eita gargalhada estrondosa

gaitada sonora, fórmula mágica

capaz de silenciar o Olimpo

e perpetuar um modo de vencer o medo,

de preservar a vontade

de tornar o mar um dia

habitante sempiterno do sertão.



sábado, 7 de agosto de 2021

uma relação abusiva

 

Chamber of Torture, Arturo Souto, 1962




os valentões do ginásio

feios, barrigudos, grosseiros,

consumidos de mau hálito

exibem

orgulhosos

suas vergonhas,

as peles flácidas

bundas murchas

dentes podres

e querem por querem nos convencer

que conquistaram a vitória


os valentões do ginásio, galhardos

expõem derrotas, fracassos

carências intelectuais

em peças promocionais de um mundo

reverso, bizarro, doente...


repleto de ódio pela beleza

verdade

amor

liberdade

igualdade

fraternidade…

os valentões do ginásio

nem ao menos atingiram o estágio burguês

estacionaram em feudos a-históricos

amontoados em paranoicas hordas

sedentas de sangue, fúria e decepção


antinaturais, os valentões do ginásio

fazem da ordem

um silêncio de cemitério

e acreditam que o progresso

não passa de um mágico artefato de guerra

capaz de fazer desaparecer

toda a consciência esclarecida do mundo


os valentões do ginásio

tóxicos, abusivos, canalhas

por negarem a realidade

não ensejam outra linguagem

que não a força bruta -

o extermínio do outro, do diferente, do desigual...


os valentões do ginásio

associados aos profissionais da morte

(os tais que reivindicam cnpj e isenção fiscal

para melhor usufruírem do Estado)

andam precisados de uma boa dedada no cu



sábado, 31 de julho de 2021

instante 43

 

Indoor Dialogue, Wojciech Siudmak, séc.XX


oh, minha alma

quantas vezes te encontro seca

vazia de propósito

rio cansado de fluir...


sem tu alma,

seria fato existir?


logo, porque não me acodes

quando te busco

desprovido de inspiração?


és algo fora do mim

ou teria que clamar

ai de mim”

para perceber enfim?


contínuo, carente, sigo

enorme

ignorante

e confuso drama



sábado, 17 de julho de 2021

colcha de retalhos

 

Divers Polychrome, Fernand Léger, 1920



não lamento as escolhas que fiz

não choro nem arranco os cabelos

por conta delas

poderia ser outro? sim,

mas aí não teria sido este

que reflete sobre as escolhas que fez

seria outro

que deixei pra lá

na primeira escolha que fiz…


sou minhas escolhas

todas elas

nem melhor nem pior

porque existe apenas escolha

e uma vez consumada

tenho o resto da vida

para conviver com ela

(eventualmente participo de reprises

ou surjo num universo paralelo

livre da culpa mas cheio de cagaço)


daí, apenas sigo...

- outros que me contem

pois vivo qual aquele que trama

uma colcha de retalhos




domingo, 11 de julho de 2021

para Sandra

 

Dois Amigos, Devin Leonardi, 2005


do grego Aléxandros

tu vieste

Alessandra

Cassandra te tornaste

(e teus olhos troianos viram

o que ninguém mais via)


os romanos te fizeram Sandra

mas cá entre nós

os navegantes

que fazem da saudade uma prece

viraste

Sandrinha

cuja beleza singular

esta linda boniteza

deriva da capacidade

de aninhar as gentes

nos teus compassivos braços:

proteger,

defender é teu negócio

modesta amiga...


acaso não sabes

formosa

que transcendeste

a maternidade

para parir

a humanidade?


ah, Sandra

Sandrinha

deixa eu ficar

ao pé de ti

para cantar

nossos confins

confortável no teu mar...? 



sábado, 10 de julho de 2021

bate papo online

 

Conversemos, Teddy Cobeña, 2017


oh baby, baby, que alívio

saber que estás aí… ao alcance do convite

praquele almoço… no chinês

onde enchemos a cara de saquê

e houve aquele beijo pra lá de inocente

- e quantos apertados abraços? (...)

estávamos embriagados

(alvíssaras, não choramos) verdade

mas nossos olhos serenos estampavam

escandalosos

a aflição de desconhecer 

o que ainda nos impede

de dançar outra vez

ao som de outros baianos… oh baby

tantas luas

outras varandas

a rodopiarem em mim

e esta avidez de fuçar bibliotecas

a porra toda, bíblia

e não encontrar capítulo

parágrafo

linha

que me livre da meleca

da bostica toda que me assola

porque nada

nada me consola

além da tua mão

sobre a minha

naquele fim de tarde

onde teus olhos e o meu sorriso

se encontraram… e tu, como estás?



sábado, 3 de julho de 2021

instante 42

 

Auto Retrato no Espelho, Geta Bratescu, 2001


estou aqui, meu bem

tão próximo

e no entanto… a distância...


(antes do anunciado inverno

sonhei uma manhã de domingo)


um gole da cerveja:

morro e ressuscito esquecido

de que nada é pior que a separação


ah meu bem, quanto me anima

saber da promessa de não desejar ser tarde


então, que a manhã seja propícia

e na ligeira noite

ergo o altar do nosso amor

diante do silêncio

mas não oro, nem pratico rituais

apenas busco… teu olhar


e na madrugada

nu

vislumbro a fonte

que me permite alcançar o mar



sábado, 19 de junho de 2021

fantasmas comensais

Sagrada Família, André Reinoso, séc.XVII



a mãe

(encardido sol)

batalha      o sustento

a fama

o futuro

do rebento… a mãe

tão linda

mais não pensa

no pai…      pensa na casa

esquecida         na discrepância

no disparate

na incongruência que é o pai…

e chora      escondida

a mãe


aflita      em rotinas      insone

flerta com absurdos 

e     desesperadamente esperançosa

inventa pesadelos     histórias      e arquiteta

enigmática

o futuro     a fama      o sustento do rebento…


à criança, a mãe suplica

desacordada

(enquanto consulta cartas):

- distraia meus fantasmas

(...)

- mas eles não somem, mãe


eis que a cria      ao se dá por presa

  perdida      abre a janela… 


 

sábado, 12 de junho de 2021

paradoxo

 

Mother and Child, Ricard Hamilton, 1984



certo, humanos são cruéis

(embora nasçam inocentemente maravilhosos)

oh, mana

quem nos ensina tanta crueldade?


rosseuau que nos ajude,

quem veio primeiro:

o ovo ou a galinha?

bons e maus,

não há meio termo nesta equação


maldição vitalícia:

talvez um pervertido

um insano qualquer

nos faça purgar este desacerto, 

sei lá...

ou quem sabe nos ensine 

a dormir feito anjos


calem-se adão e eva

pecado original e coisa e tal...

porque crianças já não nascem

terrivelmente culpadas

e fazem o caminho inverso? 



sábado, 5 de junho de 2021

Eterno Retorno

 

Man of Sorrows, Dan Witz, 2011


Ah... Meu coração,

quem nunca amou

não merece ser amado

Vinicius de Moraes/Tom Jobim



Destrói Deus em nome de Deus

Destrói a Pátria em nome da Pátria

Destrói a Família em nome da Família…


E tal qual numa manchete sensacionalista

Em que mata a família e vai ao cinema

É visto por aí

Num rolê de moto

Em meio a turba

Com um sorriso suado nos lábios

Atravessando as ruas da cidade...


(Cidade que só é maravilhosa

Na língua dos poetas

Dos tais imersos em amarga dor

Embriagados

Com um futuro impossível de dessonhar)


Enquanto no rádio toca Carmem

- “Oh, que terra boa pra se farrear”

E emenda o “Rei”:

- “Eu fico triste só de pensar em ti perder

Por isso, meu bem, até juro

De nunca

em nada mudar”.





sábado, 29 de maio de 2021

ser livro

Reading, Pablo Picasso, 1932

 


compro livro por impulso

em geral, após duas ou três páginas

os coloco para maturarem na estante


(a prateleira é uma vinha)


existem instantes

horas desavisadas

em que os colho

inesperadamente

a lhes sentir o cheiro

o sabor de seus títulos...

e conforme a oportunidade,

saboreio outras páginas


(mesmo que sorva o último gole

deixo-os permanecerem de pronto

para uma outra súbita degustação:

livros se regeneram)


verdade

que alguns viram vinagre

porém, mesmo azeda

uma leitura

podem vir a temperar

qualquer conversa


houve tempo em que

colegial

lia por obrigação

oh, quanto desprezo…

é que já sabia discernir entre ordem e sugestão

e isto me levava a uma proximidade afetiva

com aqueles mestres que,

de um ou outro modo, me diziam:

tudo na vida muda, inclusive o paladar”


e o meu mudou:

hoje ofereço à alma

o acaso dos prazeres epifânicos

das descobertas imprevistas

dos achados acidentais


afinal, a revelação está em perceber

o movimento do próprio espírito

e a constatação de que

nada é estranho a si mesmo.