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sábado, 24 de setembro de 2011

A Tradição Relativa V - 2ª Parte


www.odeporica.blogspot.com


O Companheiro de Morte, continuação

"Na manhã seguinte, no templo, Sali quis saber do sumo sacerdote se havia razão para condenar-lhe o julgamento. O ancião não tinha resposta. Alegou que precisava ouvir mais uma vez as histórias de Farlinas, precisava se preparar melhor e que, naquela noite, após terem cumprido com seus rituais de rezas e oferendas, voltariam ao palácio.

Quando o sol começou a se por, Sali estava novamente sentada ao lado do rei e Farlimas começou sua narrativa. Mais uma vez, antes do alvorecer, todos dormiam – o rei, seus servos, seus hóspedes, os emissários e os sacerdotes – envoltos pelo êxtase. Mas entre eles, Sali e Farlimas estavam despertos e sugaram o prazer dos lábios um do outro. E abraçaram-se novamente, entrelaçando braços e pernas. E assim as coisas continuaram, dia após dia, por muitos dias.

Mas se antes havia corrido a notícia das histórias de Farlimas, agora havia o rumor de que os sacerdotes estavam negligenciando suas oferendas e orações. A intranquilidade começou a espalhar-se, até que um dia, um mercador, em visita ao templo, perguntou quando celebrariam o próximo festival da estação, pois estava planejando uma viagem e gostaria de voltar para os festejos e precisava saber quanto tempo tinha. O sacerdote, muito constrangido, pois há muitas noites não via a lua e as estrelas, pediu que voltasse no dia seguinte, que iria consultar as tabelas e só aí teria uma resposta definitiva. Todo o clero foi convocado e o superior inquiriu qual deles recentemente tinha observado o curso das estrelas. Nem uma única voz respondeu. Todos tinham estado ouvindo as histórias de Farlimas. 'Não há nenhum entre vocês que tenha observado o curso das estrelas e a posição da lua?' Eles continuaram sentados completamente imóveis, até que um, que era muito velho, levantou-se e falou que haviam sido enfeitiçados por Farlimas e que nenhum deles podia dizer quando deveriam ser celebradas as festas nem quando o fogo deveria ser extinto e o novo aceso. O supremo sacerdote preocupado com o que dizer às pessoas, pediu a um noviço que trouxesse Sali até sua presença. Não lhe saía da cabeça o fato de que enquanto Farlinas vivesse e falasse todos o escutariam. Quando Sali apresentou-se diante dele, a primeira coisa que ouviu foi: 'Farlimas é contra Deus, tem que morrer'. Sali estremeceu e lembrou-lhe que o narrador era Companheiro de Morte do rei, que matar Falimas era também matar o rei. Teria o sacerdote lido nas estrelas o dia da consumação? Não, não tinha nenhuma resposta e isto o estava atormentando.

Novamente solicitou uma audiência ao rei e o encontrou no palácio, ao lado da irmã. Akaf, solítico, vendo-lhe o semblante abatido, pediu-lhe que dissesse o que passava em seu coração. O ancião pediu-lhe que falasse de Farlinas. 'Deus enviou-me, primeiro um pensamento da proximidade do dia da minha morte e eu fiquei com medo. Em seguida, Deus enviou-me a lembrança de Farlimas, que me havia sido enviado como presente de além mar. Deus confundiu meu discernimento com o primeiro pensamento. Com o segundo, ele alentou meus sentidos e tornou-me feliz'. O sacerdote disse, quase num lamento: 'Farlimas tem que morrer, ele está perturbando a ordem revelada'. Akaf levantou-se, foi até uma janela lateral donde se avistava o porto fervilhando de bens e após cofiar a barba por instantes, sem voltar-se para o velho disse: 'Morro antes dele'. Sali juntou-se ao irmão e olhando para o sumo sacerdote disse: 'A vontade de Deus dará a decisão nesta questão'. Akaf voltou para o trono e anunciou: 'Assim seja! E para isto, todo o povo deverá testemunhar'.

Mensageiros saíram pela cidade gritando aos quatro ventos que Farlimas, naquela noite, falaria diante de todos. Um trono coberto por um véu foi erigido para o rei na grande praça pública e, quando a noite chegou, o povo, aos milhares, acorreu de todos os lados. Os hóspedes, os emissários e os sacerdotes chegaram e acomodaram-se. Sali sentou-se ao lado do irmão, Akaf, o rei velado. Foi ordenado que Farlinas se apresentasse e ouvisse a acusação que o clero apresentava contra ele, de destruição da ordem estabelecida cuja sentença era a morte.

Farlimas retirou os olhos de Sali, fitou a multidão, olhou de relance para os sacerdotes e ergueu-se. 'Sou um servo de Deus e acredito que todo o mal no coração humano é repugnante a Deus. Esta noite Deus decidirá se mereço morrer ou viver'. E começou a narrativa.

Suas palavras eram no início tão doces quanto o mel, sua voz penetrava na multidão como a primeira chuva de verão na terra seca. De sua língua exalava um perfume mais intenso que o do almíscar ou do incenso; sua cabeça brilhava como uma luz de uma única luminária numa noite negra. Sua narrativa era como o haxixe que faz as pessoas felizes quando despertas e logo torna-as sonhadoras. Com o aproximar-se do amanhecer, ele elevou a voz e suas palavras inundaram os corações das pessoas como o Nilo crescente. Para algumas, eram palavras pacificadoras quanto a entrada no Paraíso, mas para outras, tão assustadoras quanto o Anjo da Morte. O júbilo tomou conta do espírito de alguns e o horror do coração de outros. E quanto mais se aproximava a aurora, mais poderosa se tornava sua voz, mais altas suas reverberações dentro das pessoas, até que os corações da multidão se levantaram uns contra os outros, em batalha; se enfureceram uns contra outros como as nuvens no céu em noite de tempestade. Raios de fúria e trovoadas de ira chocavam-se. Mas quando nasceu o sol e a narrativa de Farlimas chegou ao fim, uma perplexidade inexprimível tomou conta das mentes confusas dos que permaneceram vivos. Ao olharem ao redor, viram que os sacerdotes jaziam mortos no chão. Sali ergueu-se e prostrou-se diante do rei, que estava por trás do véu e exclamou: 'Ó meu rei, retire o véu, meu irmão: mostre-se ao seu povo e faça a oferenda você mesmo. Pois estes aqui foram ceifados pelo Anjo da Morte, por ordem de Deus'. Os servos retiraram o véu que encobria o trono real e Akaf levantou-se. Ele era o primeiro de sua linhagem de reis que o povo de Napara vira. Ele era jovem e tão belo de se apreciar como o sol nascente. A multidão entrou em júbilo. Um cavalo branco foi trazido para que montasse. Akaf dirigiu-se ao templo, tendo à sua esquerda a irmã e à direita o contador de histórias. O jovem rei pediu uma enxada e na entrada do templo cavou um buraco. Ordenou a Farlimas que lançasse nele uma semente. Cavou outro e pediu que Sali lançasse nele uma semente. Imediata e simultaneamente as duas sementes germinaram, crescendo diante dos olhos das pessoas e, ao meio dia, as espigas nascidas das duas sementes estavam maduras. O rei extinguiu o fogo no templo e todos os pais de família da cidade extinguiram as chamas de suas lareiras. Sali acendeu o novo fogo e todas as jovens virgens da cidade vieram buscar fogo dessa chama. E desde aquele dia, não houve mais sacrifícios humanos em Napata. Akaf tornou-se o primeiro Nap de Napata a permanecer vivo até que a Deus agradasse tirar sua vida na velhice. Quando morreu, Farlimas sucedeu-o no trono, elevando ainda mais a fortuna do reino".

Arach-ben-Hassul ia se preparando para sair quando um ouvinte o interpelou:
- Não entendo como isto pode ter causado a ruína do reino!
O velho barba branca contemplou-o e, enquanto ajeitava ao ombro sua abaia, completou:
- A fama de Farlimas tomou conta do mundo de tal forma que surgiu tanta inveja nos corações do homens que quando ele morreu os países vizinhos romperam seus tratados, declararam guerra ao reino e Napata sucumbiu, invadida por selvagens e bárbaros que logo esgotaram suas minas de ouro e cobre e destruíram suas cidades. Nada restou daqueles dias gloriosos senão a lembrança dos contos que Farlimas tinha trazido consigo do seu país, muito além do mar.


sábado, 17 de setembro de 2011

A Tradição Relativa V - 1ª Parte


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O Companheiro de Morte

Através de um tradutor soube que um estudioso leu na obra de um mestre a narração de um orgulhoso barba branca, numa roda de cameleiros, tuaregues, berberes, árabes, núbios, etíopes e europeus, quando da elevação da repressa de Assuã por ordens do Lord Kitchener, para manter seus subordinados ocupados com seus próprios assuntos, visto a Itália ter declarado guerra à Turquia, bombardeado e ocupado Trípoli, Cineraica e as ilhas Dodecanesas. Reunidos no mercado da cidade de El Obeid, a sudoeste de Cartum, no Sudão, em 1912, durante sete dias vários contadores revesaram-se na contação de histórias. No oitavo, Arach-ben-Hassul, descendente de uma das últimas famílias sobreviventes da antiga guilda dos artesãos de cobre, levantou-se e disse: “Agora sou eu que vou contar”. E falou de um tempo remoto em que aquela região era verde e poderosa; que um dos quatro mais ricos reis da terra, o Nap de Napata do Cordofão, era proprietário de todo o cobre e ouro da região; que mantinha domínio sobre muitos povos, todos fabricantes de armas e fornecedores de escravos para a corte; que o reino era grande exportador de riquezas para todo o Ocidente; que, embora fosse rico e poderoso, sua vida era a mais triste e limitada, pois cada Nap de Napata podia reger apenas por um breve período de anos e, que de um modo ou de outro, tudo isto junto foi a causa da destruição do outrora próspero reino de Kash. Infelizmente, esta região hoje não passa de um deserto físico e cultural. Mas deixemos o chefe dos cameleiros falar, através do mestre, do estudioso, do tradutor e deste amador que para vós escreve. Assim:

Em todo o reino, todas as noites, os sacerdotes observavam as estrelas, faziam oferendas e acendiam fogos sagrados por medo de perder a trilha das estrelas e ficarem sem saber quando o rei deveria ser morto. Assim, como tantas vezes antes, aquele dia chegou. Touros foram sacrificados; todos os fogos da terra foram apagados; as mulheres encerradas dentro das casas e, após terem decapitado o rei, os sacerdotes acenderam o fogo novo e um novo rei foi convocado: Akaf, sobrinho do imolado.

O primeiro ato oficial de cada Nap de Napata era decidir quais pessoas deveriam acompanhá-lo no caminho da morte. Elas eram escolhidas entre os que lhe eram mais caros e o primeiro nomeado seria o que dirigiria os outros. Um escravo chamado Farlimas, célebre por sua arte de contar histórias, chegara à corte alguns anos antes, enviado como presente por um rei do Extremo Oriente. E o novo Nap de Napata disse: 'Este homem deverá ser meu primeiro acompanhante. Ele me entreterá até a hora da minha morte e me fará feliz depois da morte'. Para cuidar da chama sagrada, que deveria permanecer acesa durante o período daquele reinado, os sacerdotes designaram Sali-fu-Hamr, a irmã mais nova de Akaf. Ela devia cuidar do fogo sagrado, manter-se absolutamente casta por toda a vida e ser morta, não junto com o rei, mas imediatamente após, no momento de acender a nova chama. Mas Sali-fu-Hamr tinha medo da morte e, quando ouviu que a escolha havia recaído sobre ela, ficou apavorada.

O rei viveu, por um tempo, feliz, em grande deleite, desfrutando da riqueza e majestade de seu domínio. Passava as noites com seus amigos e com todos os visitantes que chegavam à corte como emissários. Mas numa noite fatídica ele compreendeu que, a cada um de seus dias jubilosos, andava um passo adiante em direção à morte certa e ficou com muito medo. Foi incapaz de afastar aquele pensamento assustador e, deprimido, pediu que Farlimas contasse uma história. 'Chegou o dia em que você tem que me alegrar'. Farlimas começou a contar uma história e todos escutaram. O rei e os hóspedes esqueceram de beber, esqueceram de respirar. Até os escravos esqueceram de servir e também de respirar. A arte de Falimas deixou-os envolvidos numa deliciosa embriaguez. O rei tinha esquecido seus pensamentos de morte.

Naquele dia, Akaf e seu séquito mal puderam esperar até a noite e dali em diante, todos os dias, Farlimas era convocado para desempenhar seu papel. A notícia de suas narrativas espalhou-se por toda a corte, a cidade, o país. O rei, a cada dia, presenteava-lhe uma bela peça de vestuário. Os hóspedes e emissários davam-lhe ouro e pedras preciosas. Ele ficou rico. E quando andava pelas ruas, seguido por uma tropa de escravos, distribuía presentes aos necessitados. As pessoas o amavam e passaram a desnudar o peito para ele, em sinal de respeito. Sali, ao ouvir o milagre, enviou uma mensagem ao irmão: 'Deixe-me, apenas uma vez, ouvir Farlimas contar uma história'. E um dia Sali veio. Farlimas viu Sali e, por um momento, perdeu seus sentidos. Tudo o que ele via era Sali. Tudo o que Sali via era Farlimas. Tirando os olhos de Sali, o narrador começou. E sua narrativa foi no início como o haxixe, que leva a um suave adormecimento e logo conduz os homens da inconsciência ao sono. Depois de um tempo os hóspedes estavam dormindo; o rei estava dormindo. Ouviam a história apenas em sonhos, até terem sido completamente arrebatados. Mas Sali permaneceu desperta. Seus olhos estavam fixos em Farlimas. E quando ele acabou a narrativa e levantou-se, ela também levantou. Farlimas andou na direção de Sali e Sali andou na direção de Farlimas. Ele abraçou-a; ela abraçou-o e disse, olhando-o nos olhos: 'Nós não queremos morrer. Devo pensar em uma maneira de ficarmos juntos'.

Naquele dia, Sali foi ao sacerdote supremo e quis saber quem determinava quando o velho fogo seria apagado e o novo aceso. O sacerdote disse-lhe que isto era decidido por Deus. Diante da insistência da moça em saber como Deus comunicava sua vontade aos sacerdotes, o velho respondeu: 'Todas as noites observamos as estrelas. Nunca as perdemos de vista. Todas as noites observamos a lua e sabemos, de uma noite para outra, que estrelas estão aproximando-se da lua e quais as que estão afastando-se. É por isto que sabemos. Fazemos isso todas as noites. Se passasse uma série de noites em que nada pudesse ser visto, não seríamos capazes de reencontrar nossas estrelas e não saberíamos quando o fogo deveria ser extinto e aí não estaríamos em condições de exercer nosso ofício'. Sali mencionou que as obras de Deus eram magníficas e que a maior, entretanto, não era a sua escrita no céu. Sua maior obra é a nossa vida na terra. Lição que aprendera na noite passada. O sacerdote não entendeu e quis saber do que ela estava falando. Ela respondeu que Deus deu a Farlinas o dom de contar histórias como jamais existiu igual, maior que sua escrita no céu. O velho, horrorizado, disse que ela estava errada e levantou-se para abrir a porta. Sali argumentou: 'A lua e as estrelas você conhece. Mas você já ouviu as histórias de Farlimas'? O sacerdote olhou para o chão e balançou a cabeça negativamente. 'Como, então, pode pronunciar um julgamento? Asseguro-lhe que mesmo vocês sacerdotes, ao ouvir, se esquecerão de vigiar as estrelas'. O ancião encarou-a e ela, sentindo o ardor do fogo, continuou: 'Prove-me apenas que estou errada e que a escrita nas estrelas é maior e mais poderosa do que esta vida na terra'. O velho pegou-a pelo braço, colocou-a na soleira da porta e despediu-se: 'É exatamente isso o que vou provar', e fechou a porta.

Akaf recebeu uma solicitação do alto sacerdote para que fosse permitido ao clero entrar no palácio naquela noite afim de que pudessem ouvir as histórias de Farlinas. O rei consentiu e assim, quando o sol se aproximava da hora de se por e o rei, seus hóspedes e os emissários estavam reunidos, juntaram-se a eles todos os sacerdotes, que despiram a parte superior de seus corpos e se prostraram no chão. O supremo sacerdote disse: 'Foi declarado que as histórias de Farlimas são as mais magníficas das obras de Deus'. O rei disse a ele: 'Vocês podem decidir por vocês mesmos'. O salão estava repleto de gente e Farlimas abriu caminho entre ela. 'Comece, meu querido Companheiro de Morte'. Farlimas olhou para Sali e Sali para Farlimas. Tirando os olhos de Sali, o narrador começou. E sua narrativa deixou-se ouvir enquanto o sol estava se pondo. Era como o haxixe que anuvia e transporta, que induz ao relaxamento, que leva ao desmaio profundo. De maneira que, quando a lua surgiu, o rei, seus servos, seus hóspedes, os emissários e os sacerdotes dormiam um sono profundo. Apenas Sali estava desperta e quando o relato chegou ao fim, Farlimas ergueu-se e dirigiu-se para Sali: 'Deixe-me beijar esses lábios dos quais saem palavras tão doces'. Eles abraçaram-se, entrelaçando braços e pernas e deitaram-se entre aqueles que dormiam, conhecendo uma felicidade de partir o coração". 

Continua no próximo sábado...


sábado, 13 de agosto de 2011

A Tradição Relativa IV


hernehunter.blogspot.com

As Belas Palavras

Quando a cabeleira flamejante de Ñamandu
Dançava nas coroas que ornavam as cabeças dos Jeguakavas
Os caraíbas chegaram para aumentar o mal no mundo

Karai, que andava pela terra à procura de ywy mara eÿ
Recusou o sinal de repartir o rosto e disse:
- Guardem seu deus, temos os nossos!

Mburuvicha não gostou, falou dos presentes
Do pau de fogo e da faca, do quanto era grande a terra pra cultivar
E dos muitos inimigos que os Ava tinham que vencer
- Ywy mara eÿ é sonho, difícil de encontrar.

Karai tomou o assento da palavra e disse que era hora de ñe'ë porä
- É preciso ganhar a pátria das coisas não-mortais, disse Karai
Que se ywy mara eÿ não existia, que Ñamandu falasse
Que todos os deuses falassem, que era a hora da completeza acabada

Os Jeguakavas abriram seus corações e aguardaram a embriaguez.
Cessou todo o ruído da floresta, cessou o alarido das crianças
Sabiam que sem ñe'ë porä nenhum adornado iria sobreviver.

E o que Karai falou esplendorou nos corações heroicos dos Ava
Dignas dos deuses, as palavras adornaram-lhes ainda mais a alma
Ñe'e porä dentro deles, semente em cada um, ywy mara eÿ inatingível
Pela violência e pela brutalidade da Terra Má, agora domínio dos caraíbas

- Porque nós, belos adornados, somos expostos a uma existência achy,
Perguntou Karai, porque somos reduzidos a viver a vida de animais doentes?
Nós desejamos ywy mara eÿ mas nossa condição é ywy mba'e megua
Como podemos reconquistar nossa pátria perdida, nossa pátria múltipla?

Karai, um arandu porä, um ñe'ë jara, permitiu que o pensamento se libertasse
E a sua potência desdobrou desdobrando-se ao ponto de tomar conta de Karai
E não era mais ele quem falava, mas um longínquo eco de numerosas vozes
A murmurarem a dança flamejante da cabeleira de Ñamandu na noite originária
E os Jeguakavas, fios de sua cabeça, disseram, cada um com voz própria,
Karai tem razão, ywy mara eÿ vai nascer de belas palavras, de ñe'ë porä.

- Que fiquem guardadas no recôndito da floresta para serem pronunciadas
Pelos poucos numerosos que se erguem na sua totalidade de adornados.
Para que nossa carne de natureza imperfeita se sacuda
E jogue fora, para longe de si, sua imperfeição.

E quanto a você, Karai Ru Ete, você, nós-vós,
Todos os dias hás de pronunciar as abundantes palavras,
As belas palavras que nenhuma pequenez altera. 


sábado, 7 de maio de 2011

A Tradição Relativa III

Google Imagens

Nanã Baruquê

No inicio dos tempos as águas cobriam tudo que existe. 

Nanã Buruquê cuidava da vida tal qual uma boa mãe.

Muitos filhos e filhas Nanã Baruquê gerou: os Orixás.

Sentindo-se cansada, entregou a Olurum a tarefa de criar o universo.

Olorum separou o céu da terra e dividiu os reinos.

Entregou a cada irmão parte na ação e mando. 

Porém alguns orixás passaram a invadir os domínios uns dos outros.

Muitas discórdias, lutas e guerras começaram a ocorrer.

Então, Olorum chamou Oxalá, seu irmão mais velho e mais sábio e disse:

- Modele o humano para que possa habitar a terra

Olorum deseja que a Terra seja um lugar sem divisões ou  fronteiras.

Um lugar onde todos possam viver em harmonia.

Oxalá tentou vários caminhos. 

Tentou fazer o ser humano de ar mas, o ser humano logo se desvaneceu. 

Tentou fazer de madeira e a criatura ficou dura. 

De pedra, a tentativa foi ainda pior. 

Fez de fogo e o ser humano se consumiu. 

Tentou azeite, água, vinho de palma e... nada.

Foi então que Oxalá decidiu pedir o conselho da sua mãe Nanã. 

Nanã deu a Oxalá o barro do fundo da lagoa. 

E impôs uma condição: que o ser humano um dia voltasse para ela.

Oxalá pegou o barro e modelou o ser humano.

E o ser humano nasceu perfeito qual a mais perfeita ideia surgida na cabeça de um Orixá.

Oxalá pediu a Olorum que soprasse seu hálito na alma do ser humano.

E o ser humano ganhou vida e caminhou.

Todos os orixás foram convidados a contribuir na criação do ser humano. 

Cada um ofertou parte do seu poder e o ser humano pode enfim povoar a Terra.

Mas tem um dia que o ser humano tem que morrer. 

O seu corpo tem que voltar à terra, voltar à natureza de Nanã.

Nanã deu a matéria no começo mas quer de volta no final tudo o que é seu. 

Só Nanã conhece o segredo das coisas. 


sábado, 30 de abril de 2011

A Tradição Relativa II

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A Contenda dos Dois Touros

Após um ano de casado, Ailill de Leimster perguntou à esposa: “Mulher, é verdade o que diz o provérbio: a mulher de um bom homem é boa?” Ela respondeu: “Sim, mas que importância tem isto?” Ele retrucou: “Porque você é uma mulher melhor hoje do que quando a desposei”. Ela disse: “Eu era boa mesmo antes de ter-lhe visto”.

Curioso então”, comentou ele, “que jamais tenhamos ouvido qualquer coisa do tipo, mas apenas que você depositava confiança em seus ardis femininos, enquanto os inimigos nas fronteiras do teu reino pilhavam livremente seu butim e sua presa”.

Eu não era como você pensa”, disse ela, “mas morava com meu pai Eochaid, que teve seis filhas. A mais nobre e adorada de nós todas era eu. Pois com respeito à generosidade, eu era a melhor; e com respeito à batalha, luta e combate, também eu era a melhor. Eu tinha diante de mim e à minha volta duas vezes mil e quinhentos mercenários reais, todos filhos de capitães. Com dez homens para cada um e, para cada um desses oito homens; para cada um desses, sete; para cada um desses, seis; para cada um desses seis, cinco; para cada um desses cinco, quatro; para um desses quatro, três; para cada um desses três, dois; e para cada um desses dois, um. Esses todos estavam ao meu serviço; eis porque meu pai deu-me uma de suas províncias da Irlanda. Ou seja, esta de Cruachan, onde estamos agora. Por isto sou conhecida pelo título de Meave de Cruachan”.

Em seguida”, disse ao marido, “veio uma representação do rei de Leimster, Finn Mac Rosa Rua, pedir por mim. Outra de Cairpre Niafer Mac Rosa, rei de Tara. Uma do rei de Ulidia, Conachar Mac Fachtna. E ainda outra de Eochu Beg. Mas eu os rejeitei. Pois eu era a que requeria um dote raro, como nenhuma mulher jamais havia exigido de nenhum homem de Erin: que meu marido fosse um homem sem um mínimo de mesquinharia, sem ciúmes e sem medo. Se o meu marido fosse mesquinho, não daria certo, pois eu o sobrepujaria em liberalidade. Se fosse temeroso, também não daria certo, pois eu sozinha seria vitoriosa nas batalhas, disputas e rixas. Se fosse ciumento, tampouco daria certo, pois jamais fiquei sem um homem à sombra de outro. E eu consegui, na verdade, exatamente um marido assim: você, Ailill Mac Rosa Rua de Leinster. Pois você não é mesquinho, nem ciumento e nem covarde. Além dos mais, eu lhe dei presentes de casamento de grande valor, tal como convém a uma mulher; tecido para o vestuário de doze homens; um carro de combate no valor de três vezes sete jovens escravas; a largura do seu rosto em ouro vermelho, e bronze branco do peso do seu antebraço esquerdo. De maneira que se alguém o depreciasse, mutilasse ou enganasse, não haveria garantia ou compensação por sua honra aviltada, a não ser o que é meu; pois você vive nas barras da saia de uma mulher”.

Sinto-me ofendido”, disse Ailill e apelou para uma contagem comparativa das propriedade. E diante da vista dos dois desfilaram primeiramente suas canecas e cântaros, recipientes de ferro, vasos, tinas e barris de cervejeiros; anéis e braceletes, vários broches ornamentais, anéis para o polegar e vestuários de cor carmesim, azul, negro e verde, amarelo, xadrez, multicolor e listrado. Em seguida, seus numerosos rebanhos de ovelhas foram trazidos das pastagens, pradarias e campos abertos, descobrindo-se serem iguais em número; fez-se o mesmo com os cavalos e também com as varas de porcos. Entretanto, quando os animais desfilavam, foi percebido que, apesar de serem iguais em número, havia entre os do rei um certo touro chamado O-de-Chifres-Brancos, que tinha sido um bezerro entre as vacas de Meave mas que, não desejando ser governado por uma mulher, tinha fugido e tomado seu lugar entre o rebanho do rei. Seu equivalente em tamanho e majestade não havia entre os principais touros do rebanho dela. Quando ficou evidente a desigualdade, a rainha sentiu como se todo o seu rebanho não tivesse valor algum.

A rainha Meave perguntou a seu arauto, Mac Roth, se havia em qualquer província da Irlanda um touro de valor equivalente ao de O-de-Chifres-Brancos. “Conheço um duas vezes melhor e mais excelente”, respondeu, “do rebanho de Daire Mac Fachtna, em Cooley, que é conhecido como O-Marrom-de-Cooley”.

Vá”, ordenou então Meave, “e peça a Daire que me empreste o touro por um ano. No final desse ano o pagamento pelo empréstimo será feito com o próprio touro e mais cinquenta novilhas. Se alguém naquela região pensar mal por ele emprestar aquela coisa extraordinária, bem, então que Daire venha com seu touro e eu lhe concederei uma propriedade do tamanho igual ao de sua terra, além de uma carruagem com o valor de três vezes sete jovens escravas. E ele terá, além do mais, a amizade de minhas próprias coxas”.

  

sábado, 23 de abril de 2011

A Tradição Relativa




Les  Demoiselles  d'Avignon,  Pablo Picasso, 1907

A Força do Muyrakytã

No sopé da Montanha Amarela, lugar lugar frio e úmido, nasceu Ykamiaba, filha da Lua e do Sol. Crescera ouvindo, dos ventos, histórias de uma Terra Calorosa nos confins do Leste. Encantada, um dia decidiu alcançá-la e partiu acompanhada por várias de suas irmãs. 

Depois de atravessarem oceanos, campos e desertos, chegaram finalmente a uma floresta de um verde estonteante, de um verde tão verde que tiveram que ficar dias e dias de olhos fechados. Isto lhes deu oportunidade de se acostumarem com aquela profusão de sons e ruídos que, de tão estranhos, provocavam uma mistura de curiosidade e temor. Aos poucos, aquela emoção nova foi transformando-se em reverência e cumplicidade. Quando finalmente abriram os olhos, perceberam que estavam completamente nuas, livres das pesadas vestimentas e, não se espantaram com o fato de ser aquela a primeira vez que viram seus corpos.

Para não se sentirem desprotegidas, invocaram Coaraci, a virgem da manhã, a mãe do dia, que lhes ensinou o modo de fazer um adorno para o pescoço, o muyrakytã, cujo poder as manteriam vivas, livres das moléstias e dos predadores. Para que se sentissem em casa, ensinou-lhes também como fazer a paxiúba, uma flauta mágica. Tocada em dias de festas, animava a contação de histórias e as declamações dos feitos da jornada passada, presente e futura.

Um dia, enquanto Ykamiaba banhava-se nas águas claras do rio e uma de suas irmãs soprava na paxiúba o canto melodioso e longo do wirapu'ru, um homem, que não conhecia mulher e vagava por aquelas bandas a procura de tapi'i, invejou-lhes os instrumentos sagrados e os roubou. Ao tentarem recuperar os presentes que a floresta lhes dera, iniciou-se uma guerra entre os homens e as mulheres. Luta sangrenta e funesta. As que sobreviveram, decepcionadas, retiraram-se para outras regiões, formando aldeias nas quais só poderiam residir mulheres, agora denominadas as Ykamiabas, cunhãs-irmãs, aquelas que deixaram o convívio direto com o gênero masculino.

Foi no Amazonas, às margens do rio Nhamundá, perto de um lago de águas azuis, num lugar chamado de “O Monte Escondido dos Homens”, que as Ykamiabas construíram suas casas.

Temidas, ousadas, livres, aptas e ágeis, as guerreiras, embora vivessem isoladas, mantinham contato com algumas tribos vizinhas: os Apotó, Pariqui, Tagari, Aruak e Guacará. Ajudavam-se mutuamente em tempos de conflitos e invasão, mantendo relações cordiais, estabelecendo trocas de objetos ou de favores.

Purificavam o corpo e o espírito nas águas azuis do Lago Yacy-Uaruá. Do fundo do rio, retiravam o ouro verde, o barro do qual confeccionavam os seus muyrakytãs, tornado um símbolo da liberdade.

Em momentos de festa, escolhiam seus parceiros para que fossem fecundadas. Os Guaracá por serem elegantes, bonitos e respeitosos eram os preferidos para visitarem as guerreiras após o ritual sagrado, quando acontecia o momento mágico da vida das Ykamiabas: o encontro com seus amantes.

Só após a confecção do muyrakytã, elas adquiriam o direito de deitar com os guerreiros que escolhessem. A escolha era definida pela oferta de um muyrakytã ao pretendido. Depois dessa preliminar, perfumavam-se, adornavam-se e deixavam a natureza agir.

Ao darem à luz, se fosse uma menina, esta permaneceria com a mãe e se tornaria também uma Ykamiaba. Se fosse um menino, a mãe esperaria o desmame e, no ano seguinte, este era devolvido à tribo do pai.

Um caraíba viajando pelo grande rio Amazonas, após ter descoberto ouro, pedras preciosas e muitas outras riquezas raras em poder da floresta virgem, ao aproximar-se da margem viu-se cercado por um bando de mulheres fortes e bonitas que dispararam uma nuvem escura de flechas que cobriu o sol. O explorador deu meia volta e foi contar tudo ao rei de Portugal. O monarca, cheio de luxúria e ganância, mandou uma expedição bem preparada, decidida a tomar posse, em seu nome, daqueles tesouros.

As Ykamiabas conclamaram guerreiros de diversas tribos, que acederam ao pedido de ajuda. E a guerra, desta vez, foi muito mais longa e severa. As cunhãs-irmãs, obrigadas ao convívio diuturno com os homens, viram encolher lentamente aquele sonho de liberdade.

Quando a guerra terminou, as Ykamiabas haviam sido dizimadas e dissipadas. Das poucas que restaram, a maioria, cansada, decidiu acompanhar os guerreiros que sobraram na qualidade de esposas. Porém, algumas, herdeiras do sonho, da força e confiantes no poder da magia do talismã de ouro verde, embrenharam de vez na floresta para nunca mais serem vistas. 

Dizem as mais velhas que foi Jurupari, o Coaraci Raia, filho do sol, com sua mágica invejosa quem retirou o poder das mulheres. Falam que, em noite de lua cheia, quando os homens se reúnem para celebrarem aquela vitória, é possível ouvir o som longínquo de saudosas pixiúbas: são as Ykamiabas, agora transformadas em sereias, às margens do Lago Yacy-Uaruá, buscando despertar, do sono dos tempos, os elegantes Guaracás para que, amorosos, recebam a força mágica do muyrakytã.